Marcos Cruz
A vida
Confrontado com uma realidade impositiva e castradora, que concorre para a padronização dos corpos e promove o enjaulamento das almas, o homem do dia assemelha-se cada vez mais à máquina, não se permitindo o mínimo descuido no cumprimento da função para que está preparado. Estranhamente, procura afirmar-se pela via da igualdade, mostrar-se capaz de se ajustar à engrenagem do mundo, reprimindo quaisquer assomos de emoção e de verdade, pois estas, julga saber, são as maiores amigas do fracasso. Esquece-se da sua condição, caminha cada vez mais para longe de si, vai desfazendo em migalhas a dimensão humana que o acaso lhe confiou.
De noite, porém, a voz da imaginação segreda-lhe aos ouvidos que o caminho da felicidade nasce no berço do erro, que a procura da maior e mais bonita das utopias recusa correntes e espartilhos, suspira por liberdade como um peito apaixonado cavalga rumo ao abraço. É então que o sonho vem visitar a alma, contar-lhe histórias do que se passa lá fora, levá-la pela mão a ver a luz de um dia que ainda espera nascer.
Com a nova velha manhã escurece outra vez o mundo interior. Mas nada permanece como dantes: cada viagem ao reino da fantasia faz despontar uma estrela na constelação do espírito. O brilho intenso e permanente há-de ter a sua hora. Basta para isso que o homem se canse de ser bidimensional, ligando-se à corrente de si mesmo e abandonando a energia desse universal apagamento.
A obra
Nos mais pequenos passos que dá, o ser humano acusa a distorção da sua intimidade. As aspirações brotam-lhe do lugar profundo em que ela se esconde, mas logo são sujeitas ao apertado filtro do quotidiano. A ascese, o desejo de elevação espiritual, toma caminhos tortuosos até transparecer como ambição de subir na vida. Onde os pássaros procuram o topo das árvores para brincar com a liberdade do céu, os homens constroem prédios imensos para o arranhar.
Esta enviesada noção de poder repercute, a um tempo, a vontade reprimida de voar e o incontornável medo da queda, nada mais nada menos do que as duas naturezas de Ubardo, personagem central da peça homónima de Luísa Costa Gomes. Com corpo de Monstro e alma de Bela, simboliza as nossas contradições e representa o ponto nevrálgico onde todos os extremos se tocam. Tem tanto de Deus como de Diabo. Basta atentarmos nos dois únicos anagramas entendíveis que origina: Rabudo (a alcunha do demónio) e Buador (característica divina, em versão tripeira - será que a autora tinha a premonição de que a peça se estrearia no Porto?).
À volta da árvore que lhe serve de poiso entre a terra dos homens e o éter dos deuses, quatro personagens trocam impressões sobre subir e descer. Tal como Ubardo, são elas próprias desdobramentos da personalidade de um rapaz que sonha, deitado em palco, aos pés da sua história. Inicialmente motivo de estranheza e até de receio, aquele ser evasivo e indefinido que salta de ramo para ramo, impaciente, angustiado, «desertinho» por mudar, romper com a estagnação, descobrir não sabe o quê, converte-se na razão única de uma conversa aparentemente sem razão.
segunda-feira, 20 de setembro de 2010
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Espero que o Marcos já esteja inscrito na blognovela, concorre para a qualidade com os seus textos cheios de caminhos e "veredas".
ResponderEliminarJá é minha cruz ter que falar sempre a seguir a um Cruz ter falado. E, ainda por cima, este sonha como eu.
ResponderEliminarAgora, estás toda contente,com um texto destes...
ResponderEliminarPois, Luís, é uma alma gémea!
ResponderEliminarEu é que tenho razão. Embora não me fique lá muito bem porque sou tia, tu és mesmo um talento.Só é pena andares à deriva.
ResponderEliminarÉ um talento , podemos e devemos todos dizer essa verdade, e não somos tios nem primos...
ResponderEliminarUm talento mesmo.Gosto sempre dos textos dele. Aquele "S. João"...E não vens para a blogonovela?
ResponderEliminarÀ deriva, entenda-se, literariamente. O que eu quero dizer, é que deves escrever um livro ou livros e não te dispersares apenas por textos isolados.
ResponderEliminarDesculpem o silêncio, mas a minha tia é que me avisou dos vossos generosos comentários. Mais a mais, este texto é jurássico, o meu pai parece que anda a fazer arqueologia com o meu cadastro literário. É que nos últimos tempos tem sido ele a postar por mim. Quanto à blognovela, parece-me uma coisa gira, mas ando um bocadito cauteloso com os compromissos, porque nem sempre me é possível (os putos dão-nos cabo da cabeça...)fazer convergir o tempo e a disponibilidade mental para uma tarefa desse calibre. Seja como for, fico muito honrado e agradecido pelo convite.
ResponderEliminarPois, olha, Marcos eu fui ler outra vez o teu texto e fico com uma pena imensa que não alinhes na blognovela. Mas, claro, os putos são mais importasntes.
ResponderEliminar