domingo, 17 de outubro de 2010

Aquele pôr-do-sol

Augusta Clara de Matos


Inês sentia muitas vezes esta extraordinária capacidade de se maravilhar: perante uma ideia, uma conversa com alguém ou a possibilidade de qualquer futura realização.

As paisagens - os rios, se bem que tempos houvera em que sempre olhava o Tejo com uma emoção crescente, os campos, as árvores que tantos autores descreviam como quem capta um pormenor – tinham andado arredadas de si nos últimos tempos. A Natureza entusiasmava-a mais no que tinha de criadora do que de estética.

Mas aquela visão era magnífica!

Só no “2001” do Kubrick se lembrava de imagens com a mesma perspectiva de infinito, de algo de extraterrestre. Contudo, nem aí conseguira este deslumbramento.

A camioneta rolava há algum tempo na direcção do mesmo ponto cardeal o que, felizmente, lhe permitia observar o deslumbrante espectáculo sempre do mesmo ângulo.

Antes dele se lhe apresentar ao olhar ia muda, olhava a estrada um pouco anestesiada pelo movimento, sem consciência das referências. Tanto podia ser a camioneta que se movia como a paisagem. Não daria por isso.

Pensava em Ricardo. Sabia que não conseguiria esquecê-lo tão depressa. Acreditava mesmo não poder esquecê-lo até ao fim da sua vida. Tentava sempre concentrar-se inteiramente nessa ideia para poder interpretá-la até ao âmago.

Porquê este homem assim? Porquê esta quase certeza? Não fora outras que experimentara aquando de casos anteriores e poder-lhe-ia retirar o quase.

Mas, não! Com Ricardo fora diferente, seria diferente. Ele era o homem da vida toda, com o seu mistério, o seu absurdo. Conhecia-o tão bem e nunca o entenderia. Nunca se conhece integralmente alguém, pensava. Ou é porque não se aceita?

Os retratos que vira em casa de Cristina mostravam-lhe um Ricardo jovem, com cabelo farto e calças largas à moda da época. Mas era do Ricardo de agora que Inês gostava. Àquele nunca o teria amado.

Fora assim que o conhecera: com menos cabelo, prematuramente embranquecido e com largas entradas. Era o seu rosto marcado que ela gostava de olhar, as sua faces cavadas que gostava de acariciar. Fora a sua boca de dentes amarelecidos por anos de tabaco que beijara com êxtase.

Fora a sua integral humanidade que a pudera prender. Sim, só isso, pensava, porque Ricardo não tinha enfeites, nem era terno.

Reconhecia-lhe e admirava-lhe a inteligência brilhante não sem que, por vezes, deixasse de sentir contra ele uma raiva aguda, quase ódio, pela maneira como era capaz de a utilizar sempre que, em algum momento determinado, lhe interessava eliminar um adversário.

Numa conversa, numa reunião, à roda duma mesa de jantar, sempre que o seu brilho corria perigo, Ricardo armava-se da sua inteligência e desferia, sem piedade. Era um homem honesto. Mas tinha que ser o melhor. E a subtileza com que o afirmava à sua volta irritava Inês.

Uma certa luta entre ambos fora decisiva para o estreitamento de uma mútua afeição.

Olhou, de novo, as nuvens e desviou-se de repente dos seus pensamentos. Por cima da placa cinzento chumbo, qual duplo teto, o sol dardejava largas faixas divergentes em círculo. A luz era intensa e deixava adivinhar profundidades insondáveis duma clareza brilhante. Um volume, cujas três dimensões bem demarcadas o figuravam suspenso não percebia donde, misturava-se nessa sinfonia de luz e sombra de outro mundo.

Vira belos pôr-do-sol que lhe haviam provocado suaves sensações como a beleza sempre provoca. Aquela não era uma suave sensação. Era uma sensação de desassossego, de forte perturbação, de cataclismo.

Inês pensava: o melhor será não dizer nada. Quando se diz algo a alguém, seja em que sentido for, seja qual for a maneira como se diz, está sempre a fazer-se uma chantagem, ou talvez não, mas, pelo menos, a lançar um SOS o que implica forçá-lo a tomar uma atitude na nossa direcção, atitude que, normalmente, não poderá ser verdadeira se não for positiva.

A solidão humana não tem remédio. É singular.

E voltou a concentrar-se no pôr-do-sol.

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