quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Carta aberta aos líderes parlamentares do nosso país, a propósito de um menino pobre que eu fui (III)

(Conclusão)
Júlio Marques Mota*




E agora, que estou velho, esse menino pobre que eu fui e já não sou lembra-me que concretizou a insubmissão possível e num regime em que esta era praticamente impossível. E agora? Porquê esta submissão quase total aos mercados financeiros? Pergunta-me ele. Também aqui, responda-lhe quem souber. Mas é uma questão importante, tanto mais quanto hoje é a lógica destes mercados que é predominante. Viu-se e vê-se agora com as políticas de austeridade, em que os mercados financeiros ditam as leis, as normas, os regulamentos, as políticas orçamentais nacionais, que Bruxelas depois aproveita para tornar a impor e para reforçar os mecanismos de controlo. Rapidamente, os grandes operadores financeiros criaram um clima de instabilidade e de submissão dos Estados nacionais aos seus ditames, muito mais que antes da crise, clima a partir do qual estão a recuperar financeiramente do desastre que eles próprios criaram e nos impuseram, com a complacência de Bruxelas e dos governos nacionais. Fazem descarrilar as taxas de refinanciamento dos Estados nacionais, fazem descarrilar os encargos da dívida pública, fazem descarrilar os orçamentos nacionais, anulam ou condicionam os projectos de futuro de cada nação aos imperativos do presente que estes mercados impõem. Por detrás dessa imposição, desse pretendido controlo, está uma estranha certeza, uma estranha teoria, a de que os mercados são sempre eficientes e traduzem sempre o melhor, mesmo que este “melhor” possa ser o que temos estado a assistir. Estranha noção de eficiência em que se quer fazer assentar a democracia nos países da zona euro. Se dúvidas houvesse veja-se que o próprio Fundo Europeu de Estabilização Financeira precisou ele próprio do rating das agências privadas.


E, agora, que estou velho, esse menino pobre que eu fui e já não sou lembra-me também da primeira lição que em política duramente aprendeu. Fechado o meu círculo de vida activa, deixa-me sozinho com uma outra pergunta: será que os pobres continuam hoje ainda a não poder ganhar? Também aqui, responda, quem souber. Hoje? E amanhã? Para onde é que parece que nos estão a empurrar? Veja-se quais são as perspectivas do FMI, por exemplo, quanto à evolução de numerosos países, entre os quais o nosso, apresentadas por esta Instituição (Outubro de 2010):



— Para restaurar a viabilidade das suas finanças públicas, numerosos países devem reduzir os seus défices orçamentais.

— O reequilíbrio orçamental faz geralmente descer o crescimento a curto prazo. Graças a um novo conjunto de dados, concluímos que dois anos depois, uma redução do défice de um ponto percentual do PIB tende a fazer baixar a produção em cerca de 1/2% e a aumentar a taxa de desemprego em cerca de 1/3% do ponto percentual.

— A longo prazo, o desendividamento pode fazer crescer a produção fazendo baixar as taxas de juro reais e permitindo reduzir os impostos.



De acordo com o FMI, a grave situação que atravessamos ainda se vai degradar mais e mais. Mas a última afirmação é elucidativa. O problema residirá no facto de que as taxas de juro reais hoje existentes são muito altas. É preciso pois uma cura forte de austeridade. Assim, de acordo com esta linha de raciocínio, acredita-se que a melhoria das contas públicas supostamente conseguida, por todo o lado na Europa, levará à redução da dívida pública por unidade de rendimento, que proporcionará a diminuição das taxas de juro, e logo em termos relativos o serviço da dívida, que permitirá o crescimento económico e que tudo em conjunto fará baixar as taxas de juro reais. Sendo este assim um efeito positivo esperado, apenas no longo prazo que não se sabe quando é, então é porque se julga que um grave problema de agora são os níveis elevados das taxas de juro reais e que as políticas orçamentais nacionais altamente restritivas são necessárias para as reduzir. Mas o que falha aqui neste raciocínio é não se querer entender o porquê de estarem altas. Não podemos ignorar que são os grandes fundos de investimentos, grandes fundos de pensões, os grandes bancos de investimento, os grandes investidores e especuladores que as impõem e exigem quando cada Estado nacional precisa de se refinanciar. Esse é o verdadeiro problema a enfrentar e deve sê-lo hoje e não amanhã, num tempo indeterminado.

À procura do longo prazo, com estas políticas orçamentais corre-se o risco de se destruírem os próprios Estados democráticos. Dê-se um exemplo: a Irlanda tem estado com taxas de crescimento negativas e na ordem dos 2,6%. Financiada a sua dívida pública a taxas de 6%, só a manutenção dos valores da dívida pública por unidade de rendimento em 78% exige aproximadamente um excedente público primário na ordem dos 7%, numa situação de crise! No caso de Portugal, para uma taxa de financiamento de 6,5%, um crescimento esperado de 1,6% e uma dívida pública por unidade de rendimento de 76,8%, seria necessário um excedente público primário de cerca de 4% (com a excepção da taxas de refinanciamento que são as mais recentes, os restantes dados foram retirados do Country Handbook da Moodys de Junho de 2010). Repito a pergunta que me foi feita atrás: será que os pobres continuam hoje ainda a não poder ganhar? Como se perspectiva, continuarão, assim, a não ganhar...

Retomando o FMI, o raciocínio subjacente ao texto anterior conduz-nos assim a pensar que se abdica do controlo dos mercados de capitais, diremos mesmo que se continua a abdicar de uma regulação eficiente e que, em vez disso, se segue uma via dolorosa para contornar e só a longo prazo a verdadeira violência que estes mercados actualmente estão a impor. Porquê esta submissão quase total aos mercados financeiros? Perguntou o menino pobre que eu fui. Questão pertinente quanto o que se deve exigir antes, e exigir é o termo, é que estes mercados e estes agentes, independentemente de se estar em tempo de crise ou não, estejam fortemente regulados e que muitos dos seus mecanismos e instrumentos utilizados na especulação sejam rigorosamente proibidos. Na Alemanha começou-se a dar sinais nesse sentido, quando o regulador deste país, BaFin, proibiu, mas lamentavelmente só agora, quer as vendas a descoberto sobre as obrigações dos governos europeus e sobre as acções dos maiores bancos e seguradoras nacionais quer também os contratos de CDS a descoberto sobre as obrigações de Estado; proibiu as armas de destruição maciça a que se referiu Warren Buffett. Curiosamente, esta atitude alemã foi acompanhada por um profundo silêncio das Instituições Europeias. A situação de desregulação nos mercados de capitais é tal e o poder destes é tal que levam a situações que me parecem paradoxais: há Estados nacionais que se refinanciam a valores superiores a 6% ou até a cerca de 12% como a Grécia enquanto a Microsoft se pôde financiar ainda agora em 4,75 mil milhões de dólares a 0,875%, há bancos que obtêm liquidez do BCE a 1% para a “cederem” aos Estados nacionais que estão sob a égide deste Banco a 6,5%. Dá tudo isto muito que pensar…

A União Europeia ao impor na prática o que os mercados financeiros querem em vez de construir os mecanismos e instituições que sejam garantes do projecto que esteve na base da sua construção, a Europa do progresso social e das solidariedades, não estará ela a fazer com que esse menino pobre que eu fui e já não sou passe afinal a ter a ideia de se estar a caminhar para a situação económica de onde partiu? É certo que quando criança viveu num sistema político de ditadura, caracterizada por um aparelho feroz, enquanto agora estamos numa democracia mas numa situação em que se quer que o caminho que se está a impor tenha o consentimento de toda a gente, porque é uma exigência dos mercados. Caminho provavelmente de retrocesso ao nível económico e de bem-estar, que nos pode aproximar dos tempos do menino pobre que eu fui. Caminhos a fazer lembrar George Orwell, entre outros autores, e os seus livros Na Penúria, Guerra de Espanha e 1984, talvez.

Exageros nesta análise? Disso, bem gostaria de estar certo, mas do que apenas estou certo é de que se não mudarmos de direcção é para onde poderemos ir parar. Porém, o que parece agora inegável é que a submissão aos mercados continua a imperar, enquanto os pobres continuam a não ganhar, mas querem continuar a ser respeitados, considerados, o que nos outros tempos, já longe, era impossível. E isso continua a ser ainda possível. É afinal neste quadro que se deve inserir a dimensão das questões levantadas a propósito do empréstimo dos manuais escolares e que estimularam todo este texto. Responder a estas exige pois que se responda primeiro à crise global e nacional e, para isso, é necessário que as grandes Instituições internacionais reassumam as funções para que foram inicialmente criadas e que as Instituições regionais como as da União Europeia, em conjunto com os Estados-membros, sejam uma garantia colectiva da existência de uma verdadeira soberania dos Estados face aos múltiplos mercados globais e nacionais.

Certo da vossa atenção, as minhas cordiais saudações académicas.


*Prof. Auxiliar Convidado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra

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