quinta-feira, 21 de outubro de 2010

O Tanque (Mais um conto – verdadeiro –da Guiné)

Adão Cruz


O alferes Almeida foi meu companheiro de quarto em Bigene, no norte da Guiné, se é que podemos chamar quarto ao alpendre onde dormíamos. Cerca de oito anos mais novo do que eu, o Almeidinha fez-se meu amigo de verdade. Amigo desde o acampamento da Fonte da Telha, do quartel de Porto Brandão e da Amadora.
Embarcámos para a Guiné no velho Uíge, empurrados pelo magnífico patriotismo de Salazar, entalados entre o belo gesto das senhoras do movimento nacional feminino e o malabarístico safanço dos filhos dos ricos e patriotas da situação. Embalados pelas ondas do mar quente da Mauritânia, e sossegados pelas ricas ementas flamejantes do cozinheiro de bordo, demos à costa da Guiné no dia 13 de Maio de 1966.
O Almeida e eu pertencíamos à mesma companhia. Eu como médico e ele como atirador, comandante de pelotão. Nos primeiros tempos da nossa comissão na guerra da Guiné estivemos separados. Eu fui destacado para Canquelifá, perto da fronteira da Guiné-Conakry. Ele esteve de intervenção durante algum tempo. Quando a companhia se fixou em Bigene, já eu lá me encontrava.

Um avião fora buscar-me a Canquelifá para vir prestar assistência à última companhia de farda branca que em breve regressaria à metrópole, sendo substituída por aquela em que estávamos integrados. De novo juntos, o alferes Almeida e eu, programámos o nosso futuro no sentido de transformar os dias quentes (em sentido térmico e bélico) e incertos que se anteviam, nos melhores dias da nossa vida. Outra coisa não era de esperar do seu espírito folgazão e irrequieto, da sua grande alma de vinte anos.
E vivemos juntos acontecimentos fabulosos. Ao contrário de mim, ele era todo patriota, á sua maneira. Cascava nos colonos, a cuja família pertencia, e gramava bestialmente os pretos. Mas soberania era soberania, e por isso ali estava para a defender. Ele lia, na altura, Morreram pela pátria de Mikail Cholokow. Eu lia Os condenados da terra de Frantz Fanon, que ele dizia ser a minha bíblia de anticolonialista subversivo. Penso, no entanto, que poucas pessoas gostaram tanto de mim como aquele moço.
Ajudou-me, quase sem querer, a conhecer as gentes e os costumes da Guiné, e contribuiu de forma sublime, ainda que um tanto inconsciente, para o maravilhoso entendimento do internacionalismo, do anti-racismo e da solidariedade entre os povos. Julgo que, se ele tivesse vivido até ao fim da comissão, deixaria de chamar turras aos guerrilheiros que o mataram.
Foi num dia em que eu me sentia muito triste. Talvez pelo falecimento da Sónia na África do Sul, uma lindíssima amiguinha de vinte anos, que conheci em férias em Lisboa, e que me escrevia com muita ternura. O Almeida procurou animar-me, lembrando-me o chuveiro que havíamos improvisado a partir de um bidon e de um ralo de regador, e que borrifava sobre nós os mais belos minutos do dia.
Desta vez era um tanque, que construímos com uns restos de cimento encontrados numa arrecadação, e que iria proporcionar-nos, apesar da sua estreiteza de três metros por um, algumas deliciosas banhocas. A inauguração estava marcada para esse dia, e o Almeida, atrevido, imprudente como sempre e um tanto irresponsável, já se tinha deslocado sozinho a Barro, a fim de arranjar uma galinha que servisse de manjar no festejo. Barro era uma pequena aldeia nativa a onze quilómetros de distância, onde a Companhia mantinha um pelotão. Toda a estradeca estava minada e as emboscadas eram constantes. Mas o que é certo é que a galinha já estava do lado de cá.
A meio da madrugada o Almeida acordou-me: - já que não vens comigo fazer a patrulha, meu cobardesito de merda, fazes um bom xabéu com essa galinha para mereceres o mergulho no tanque. Eu respondi-lhe: - Tem mas é juizinho nessa bola, não te armes em herói, senão nem a galinha provas. – Cobarde, um cobardesito é o que tu és, retorquiu ele sorridente, com um aceno amigo que nunca mais haveria de fazer.
Eram dez horas da manhã quando a nossa velha GMC irrompeu pela cerca de arame farpado, em correria demasiada para o seu velho e gasto motor, como se ela própria sentisse a tragédia que transportava no bojo: o corpo do alferes Almeida crivado de balas dos pés à cabeça. Puxei de um cigarro mas não consegui segurá-lo entre os dedos. E nunca tomei banho no tanque. A única recordação dele, que hoje ainda mantenho, é o livro que tinha na mesinha de cabeceira: Morreram pela pátria.

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