domingo, 3 de outubro de 2010

Como se fora um conto: Au Berto, duas letras

José Magalhães
Há muitos anos, ainda meu pai era rapazote, havia em casa de meu avô, em Paços de Ferreira, um empregado (chamava-se criado na altura, e isso nada tinha de pejorativo) de seu nome Alberto. Era o homem de confiança de meu avô, e a palavra dele quando consultada, fazia lei lá em casa.

Paços de Ferreira, era na altura, e ainda o foi até à minha juventude, uma aprazível Vila, com Amoreiras espalhadas por várias ruas da terra, cujas amoras brancas eram deliciosamente doces, e as folhas serviam em grande parte para alimentar os bichos-da-seda de uma fábrica de fio de seda, pertença do meu tio Simplício, e existente no centro do Porto, e para criar uma maravilhosa sombra nos dias de canícula. A casa de meu avô ficava mesmo no centro da terra e tinha um terreno de aproximadamente meio hectare, e que nos dias de hoje é um (mais um) Centro Comercial. A vida corria calma e a feira da rotunda, nos dias em que realizava, era um dos locais onde eu mais gostava de ir.

Alberto era extremamente esperto, quiçá mesmo muito inteligente. Era ele que fazia os negócios em nome de meu avô, no que dizia respeito à compra ou venda de vacas, vitelos, ou porcos, à compra ou venda de terrenos para cultivo, ou de pinhais, ou outros quaisquer negócios que fossem necessários ou vantajosos. Bastava-lhe olhar para um pinhal para dizer, sem nunca errar quantos metros cúbicos de madeira ele produziria. Bastava-lhe olhar para uma vaca para dizer se valeria a pena comprá-la e quantos litros de leite poderia dar por dia. Meu avô era Solicitador Encartado com escritórios montados em várias comarcas e o seu tempo para estas lides era limitado, para além de ter uma demasiada brandura nas negociatas, sendo muitas vezes levado à certa.

No entanto, Alberto tinha uma dificuldade que lhe trazia de quando em vez alguns transtornos.

Não sabia ler nem escrever!

Minha avó, e também minhas três tias que estudavam para virem a ser professoras primárias, diziam-lhe que tal era necessário, até mesmo para um dia ele poder arranjar uma noiva e casar. Na sua boçalidade e com uma certa arrogância dizia que tal não era preciso para nada, que lhe bastava a sua sabedoria e esperteza. Em tom de brincadeira, dizia que para casar não precisaria de saber dessas coisas, que as mulheres eram como as vacas leiteiras, desde que tivessem perna fina e pescoço alto, seriam o ideal. Nestas conversas recebia sempre admoestações das senhoras da casa, e incentivos à aprendizagem das coisas das letras.

Minha avó e minhas tias, meteram na cabeça que teriam de conseguir ensinar Alberto a ler e a escrever, e ele acabou por concordar em ser aluno delas. Meu avô, sempre muito céptico quanto às capacidades para as letras do seu homem de confiança, dizia que quando elas conseguissem isso, e se, lhes daria o que elas pretendessem, fosse o que fosse. Tudo dito com a certeza de que nunca teria de concretizar tal obrigação.

Mesmo assim, mesmo sabendo das dificuldades que iriam encontrar, meteram mãos à obra, uma de cada vez, primeiro minha avó que ao fim de algum tempo desistiu, depois meu pai, que também tentou intrometer-se no assunto e que dizia ao fim de três semanas que era uma missão impossível, depois, cada uma das minhas duas tias.

Toda a gente desistiu, e em conjunto foram dizer-lho. Apesar de toda a sua esperteza e inteligência, no que dizia respeito às letras Alberto era verdadeiramente um calhau com dois olhos.

Ao ouvir tal decisão, dita pela minha tia mais velha, ripostou que tal não era possível, que o esforço de todos tinha sido compensado e que ele já sabia as letras todas, pelo que deveriam continuar a ensiná-lo, e quis ir falar com o meu avô.

Já na sua presença, disse:

-Senhor doutor, sinto-me muito triste e ofendido. Algumas meninas, poucas, disseram-me que não me ensinavam mais a ler e a escrever pois que eu nunca o conseguiria. Isso não é verdade e por favor diga-lhes e mande-as continuar a ensinar-me. Eu até já sei muitas letras.

Perante tal, meu avô interpelou-o:

-Se é assim Alberto, diz-me lá, quantas letras tem o teu nome?

-Duas senhor doutor!

-Duas?

-Sim, claro, duas, Au e Berto!

Claro que Alberto, que ainda trabalhou muitos anos em casa do meu avô, ganhou algum bom dinheiro em negócios, acabou por casar com uma mulher pequena, rechonchuda e de perna bem curta e gordinha, teve um rancho de filhos e foi muito feliz até ao fim dos seus dias. Morreu muito velho.

Nunca mais se livrou do seu novo nome, que ostentava com orgulho;

Au Berto Duas Letras.

9 comentários:

  1. Apesar de teres andado na universidade dos engraxadores, reconheço-te grandes méritos de cronista. Por isso, os meus parabéns!

    ResponderEliminar
  2. As crianças no início da aprendizagem da escrita também pasam por esta fase em que uma sílaba corresponde a uma palavra. Assim, poderiam dizer que era au ber to. Mas este Alberto ainda comeu mais uma, o que é engraçado.
    No inicio dos anos 70 juntei-me com outros jovens e preparámos alguns menos letrados para os exames da 4ª classe, do 6º ano e até a começar a ler e a escrever. Foi uma das aprendizagens mais fortes ver a força de vontade de uma mulher - empregada doméstica - aí de uns 50 anos que queria aprender a escrever o nome dela. Recordo o seu esforço, as mãos desajeitadas, o ar de agradecimento por eu lhe tentar moldá-las à forma do lápis. Era sobretudo o ar de resignação pela sua condição que me chocou tanto e revoltou por haver pessoas naquela situação.

    ResponderEliminar
  3. Às vezes, os engraxadores, e outros por quem intelectualmente nada damos, têm a capacidade de nos surpreender. Tenho várias histórias que atestam isso.

    Nestes pequenos textos, vou tentando mostrar o lado engraçado das coisas e das situações.

    Obrigado Augusta Clara e Clara Castilho pelos vossos comentários.

    ResponderEliminar
  4. Há semanas atrás, discutimos aqui conceitos de cultura e não no entendemos porque partíamos de definições diferentes. Confundia-se, quanto a mim, cultura com inteligência e sabedoria. Houve quem dissesse (não me lembro quem) que se podia ser analfabeto e culto - afirmação que não aceitei, porque a única forma de ser culto é adquirindo conhecimentos e, por enquanto, a leitura é indispensável. Porém, a inteligência e a sabedoria popular dispensam a leitura. Ao longo da vida, tenho conhecido pessoas iletradas ou mesmo analfabetas, de grande inteligência e sabedoria. E estou a lembrar-me de um engraxador do Café Paraíso, em Tomar, inteligente e com uma habilidade superior para o desenho. Mal sabia ler.

    ResponderEliminar
  5. Não tenho nenhumas dúvidas disso, Zé.

    ResponderEliminar
  6. A brincadeira era sobre o "engraxador" e não o engraxador sem aspas, Acho que o Zé Magalhães percebeu. Aqui só há gente inteligente e com humor, também.

    ResponderEliminar
  7. Um tema para disacussão qualquer dia podia ser "O Sentido de Humor". O que é isso? Todos as pessoas inteligentes o têm?

    ResponderEliminar
  8. Bem, se calhar nem todas as pessoas ditas inteligentes têm sentido de humor, mas tenho para mim que todas as que tiverem sentido de humor são inteligentes.

    ResponderEliminar