domingo, 24 de outubro de 2010

In limine

Adão Cruz


Pelos caminhos de prantos e sorrisos, dentro de um tempo farto de horas sem minutos, a vida vai colhendo flores que murcham, por não serem simples flores ou flores simples, sem exigências de estufa ou jardim, flores de terra húmida, céu por cima e sol de permeio.

Em tudo o que me é vida interfere a vergonha de ser adulto. Descortino as janelas que me disseram haver dentro dos homens e só vejo muralhas. Nada de crianças. Os homens comeram as crianças, os homens comeram-se crianças, os homens pariram-se adultos.

Os pongídeos chegaram a homens. Quinze milhões de anos para o homem ser bicho. Bicho erecto. Rastejo de púrpura.

Eu nasci na erva e dormi no feno, e acordei com a voz dos melros e rouxinóis e saltitei com os pardais.

Vesti-me de sol e despi-me de luar. Estreei o mundo no abraço das árvores e no beijo dos rios. Meus olhos dormidos casavam a noite e o dia no mesmo silêncio de sonho-menino. A vida viveu em mim crescendo todos os tamanhos e medindo todos os céus. Também eu fui criança e matei em mim a criança que procuro, ao pensar que eram de amor as mãos que a mataram.

Passei a vida a correr tropeçando nas sombras. Arrumei ao canto da luz mil horas vazias, sangradas a curricular futuros para ser gente na praça dos homens. Pisei os passos pequeninos nos avessos da verdade e palmilhei léguas vagarosas a tossir poeira.

Vestido de ausências fui renascendo de amor pela vida fora, nos infinitos da fantasia que outros foram lentamente matando com fruído prazer.

(Desenho de Manel Cruz)

8 comentários:

  1. E comeram mesmo as crianças. Mas não tu que continuas a ter um menino lá dentro.

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  2. Adão, com a família que geraste não perdeste nada com a vida.

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  3. Um xi-coração a ambos

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  4. Olha, Adão, mas eu não quis dizer que tu tinhas comido um menino.Foi uma redacção à menino Tonecas :)

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  5. Não sou desses, Clara, até porque não sou papa, nem cardeal, nem bispo, nem padre.

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  6. Não era nesse sentido. Era no sentido literal do termo.Não brinco com tal coisa.

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  7. Eu sei. Eu é que puxei a brasa para a minha sardinha.

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  8. Vou pedir ao Carlos para colocar a pintura do teu poema no sítio do costume. Fica tão mais bonito do que pendurada no fim.

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