sábado, 2 de outubro de 2010

Mulher parindo um filho no Outubro de uma tarde francesa, no parque público de Saint Exupéry, em Paris

Paulo Melo Lopes


Krief nasceu no Outubro de uma tarde francesa, no parque público de Saint Exupéry, em Paris, enquanto pombas de asas geladas arrulhavam pedaços de pão faminto. Sua mãe, aflita nos estertores de uma gravidez incómoda e inesperada – e por distracçãodescoberta ao oitavo mês -, apoiou as mãos nuas na pedra do banco, primeiro a direita, depois a esquerda, e finalmente odorso imenso e quase a estoirar de carne, e pensou: Posição cómoda para parir é abrir as pernas e esperar. Pensou ainda: Este jardim é muito bonito. Pensou também: Ai! A mãe de Kriefdizia pensar a dor; inventariava e coleccionava dores, digamo-lo assim. Puxouo caderno preto do bolso do casaco felpudo, aguçou o lápis com os dentes, e escreveu: A dor de parto no Outubro de uma tarde francesa, no parque público de Saint Exupéry, em Paris, enquanto pombas de asas geladas arrulham pedaços de pão faminto, é uma dor difusa e irreal, como víssemos a partir de um plano superior uma mulher parindo um filho a quem deitará o nome de Krief, apoiando as mãos nuas na pedra do banco, primeiro a direita e depois a esquerda, e finalmente o dorso imenso e quase a estoirar de carne, enquanto pombas de asas geladas arrulham pedaços de pão faminto, é diferente da dor de parto de quem tem um filho numa maternidade ou mesmo em casa. Acrescentou: E é infinitamente triste. Cerrou com força as mãos nuas e gritou. As pombas não voaram.

28 comentários:

  1. É o Paulo Melo Lopes, um talentoso colaborador - um dos Paulos, o outro é o Paulo Rato, o homem da música. Dois Paulos de uma assentada.

    ResponderEliminar
  2. eu bem digo que o Estrolábio é feito de pares! Muito bom!

    ResponderEliminar
  3. Vivam os Paulos para ver se os Carlos começam a ser um bocadinho menos arrogantes:)

    ResponderEliminar
  4. Não posso dizer que gostei, mas também não posso dizer que não gostei. Acho um texto prenunciador de boas coisas, no entanto, com arranjos literários um tanto artificiais e tangenciais à "naturalidade" da escrita, os quais, se exorcizados, poderão deixar o espírito liberto para muito boas coisas.

    ResponderEliminar
  5. Olá, meu amigo, já cá estás? Eu gostei bastante. Não sou assim tão exigente como tu,certamente porque não sei fazer essas análises tão rigorosas. Espero que as dos meus textos também sejam assim e que o lançamento tenha sido bonito.

    ResponderEliminar
  6. Acho que o Paulo escreve muito bem - o que o Adão nota, a tal visibilidade da estrutura, a "armação" à vista, mais do que um defeito é uma característica - grandes mestres da literatura usaram essa técnica. O Adão prefere uma escrita fluente, sem soluções de continuidade. Mas se todos tivéssemos uma maneira uniforme de escrever...

    Os Carlos, arrogantes? O termos consciência da nossa grandeza é arrogãncia? Charlie Chaplin nos valha!

    ResponderEliminar
  7. Volto atrás para dizer que ao reler o texto de Paulo Melo Lopes, gostei mais do que ao lê-lo pela primeira vez, pelo que a minha primeira obvservação pode ter sido injusta. Mas foi a sensação que me ficou. Eu sei, Carlos, que a "visibilidade da estrutuea" ou a "armação à vista" podem produzir muito efeito, e eu gosto muito e já tenho coisas escritas nesse estilo, mas é preciso cuidado pois é uma opção que se situa, muitas vezes, numa delicada fronteira entre o sublime e o ridículo.Do Lobo Antunes, por exemplo, há coisas bonitas e outras de que não gosto.

    ResponderEliminar
  8. Augusta, já cá estou de novo. Correu tudo muito bem, o salão nobre da OM é muito bonito e estava cheio, apesar de terem faltado muitos amigos em razão da caça, do fim de semana prolongado e de outros impedimentos. Foi uma apresentação simples como eu quis que fosse, um pouco ao contrário das anteriores, a primeira na Biblioteca Almeida Garrett e a segunda no Europarque. A apresentação, muito singela, foi feita pelo Prof.Doutor Cassiano Pena de Abreu e Lima e por mim. Tenho todo o orgulho em dizer que o Prof. Cassiano é meu colega de curso, meu amigo de há muitos anos, é catedrárico da Faculdade de medicina do Porto, foi um dos melhores presidentes da Sociedade Portuguesa de Cardiologa da qual é hoje Presidente Honorário, foi um dos maiores investigadores e cientistas da cardiologia portuguesa, com renome nacional e internacional e é detentor de uma vasta e profunda cultura.

    ResponderEliminar
  9. Adão,dou-te os parabéns por isso tudo menos por teres amigos caçadores.
    Quanto aos estilos de escrita, o que vocês sabem! Eu, quando escrevo, não penso em nada disso.
    Aos Carlos já nem digo nada. Agora queriam-se comparar ao Chaplin. Palavras para quê?

    ResponderEliminar
  10. Ainda voltando aos estilos, vou contar uma história. Nos tempos idos, quando eu redigia comunicados políticos, disseram-me uma vez que estavam muito bem feitos, modéstia à parte, porque os redigia em estilo jornalístico, ou seja, primeiro dava realce ao assunto tal como ele se apresentava no momento e, só depois, lhe ia buscar os antecedentes. Ora, eu não fazia a menor ideia que tal regra existisse. Redigia-os da maneira que, instintivamente, achava certa.
    Sobre isto já li opiniões de autores afirmando marimbarem-se pura e simplesmente para isso a que se chama estilo e cuja alma eu, francamente, ainda não consegui captar.
    Lobo Antunes: um dos meus escritores portugueses favoritos. O livro "Exortação aos Crocodilos" foi o primeiro da "fase difícil" que li e deu-me um infinito prazer essa dificuldade, o ter que procurar o sentido naquelas dissonâncias, no que lá não está escrito.

    ResponderEliminar
  11. Está a ver Paulo - a casa é mesmo animada. Dizemos o que pensamos. Na minha opinião o seu texto é mesmo bem escrito. Parabéns.

    Augusta Clara, para ganhares discussões não olhas a meios - quem se comparou a Chaplin? Apenas invoquei o testemunho de uma entidade superior: - Charles (pois que outro nome havia de ter?), Charles Chaplin - Charlot para os devotos.

    ResponderEliminar
  12. Augusta, os meus amigos são meus amigos, independentemente do que fazem. Infelizmente, alguns dos meus amigos são caçadores, e, a despeito de eu destestar este desporto cruel, oferecem-me o produto da caça, de que eu gosto muito. Quando eu vir que deixar de comer perdiz dará significativo contributo para acabar com a caça, nunca mais irá perdiz à minha boca.

    ResponderEliminar
  13. Está bem, já cá não está quem falou :)

    ResponderEliminar
  14. Sou assim, Carlos, desonesta até à medula. O mundo não é dos espertos? Então?!

    ResponderEliminar
  15. Ainda me hão-de explicar o que é isso da "armação" à vista (só me soa a betão) e, então, só então, passarei a ter respeito por quem conversa em linguagem codificada para os outros estrolabiadores ficarem de fora.

    ResponderEliminar
  16. Usa-se desde Gil Vicente a comparação entre a carpintaria e a literatura, sobre tudo a dramática. A armação de uma peça de teatro, tal como o esqueleto de um móvel ou de uma casa, é o entrecho, a história, o fundo moral, se o tiver, tudo isso que está por debaixo das falas dos actores. O termo tornou-se extensivo a toda a produção literária.
    Já agora, também tenho amigos caçadores (nenhum se chama Carlos). Não os poupo e quando me dizem que o prazer não é o de matar mas a avenhtura de surpreender os animais, pergunto-lhes se uma máquina fotográfica não seria mais indicada para os surpreender do que uma caçadeira que os mata. Mas não me ouvem. Não deixo de ser amigo deles - compreendo que já não têm idade para mudar.

    ResponderEliminar
  17. Auspiciosa entrada. Bem-vindo, Paulo!

    ResponderEliminar
  18. Estou sempre a aprender contigo, Carlos. Agora, falta perceber isso na prática. Pois, pois, essa dos caçadores e dos aficionados tauromáquicos...

    ResponderEliminar
  19. E, ainda, por cima não só matam os animais a tiro como abandonam os cães.

    ResponderEliminar
  20. Boa, Paulo, primeiro estranha-se e depois gosta-se! belo texto!

    ResponderEliminar
  21. E assim se conversa sobre tudo, menos sobre o texto acima! Que tal arranjar um espaço para diálogo?
    Paulo: bem vindo! De discussões de estilo não pesco peva. Escrevo sem saber nada disso. Posso voltar atrás e substituir uma palavra por outra, por sentir que soa melhor... Do texto, ficou-me a solidão da mulher, o frio, numa situação que nem as pombas se incomodaram a voar... Não se incomodaram ou ficaram a fazer companhia?

    ResponderEliminar
  22. Acho que uma mulher a parir está sempre só com o seu rebento.As dores não passam e as pombas não voam, mas a vida acontece e o grito ouve-se (isto continua a ser assim, mesmo com a pidural...)

    ResponderEliminar
  23. Fala-se de caça. E de carpintaria. E de Chaplin. E trocam-se galhardetes. E discutem-se estilos.
    Tudo isso por causa do texto. Fico contente.

    ResponderEliminar
  24. E eu, se fosse a ti, também ficava, Paulo, porque eu não quero fazer crítica literária. O teu texto entranhou-se-me. Não preciso de falar mais dele. Fiquei a conversar na tua casa. E foi muito bom.

    ResponderEliminar
  25. e fala-se de frio e de solidão. de pombas que voam, da vida que brota. da margem do rio, e do que o texto promove, meandros da alma, mem´rorias truncadas, fala-se de tudo, e acha-se que não se fala do texto que tudo aconteceu. fala-se porque falamos sem pedir nada, fala-se porque se fala coisa estranha que precisamos. fal-se disto e tudo daquilo. dos animais mortos e outros perdidos. fla-se dela, da morte e abandono. fala-se de vida, um grito surdo abafado pela anestesia. fala-se de tudo e também do hospital e fala-se da mãe que antes paria sozinha. Por cá é assim, quando há espaço tomamos conta e falamos, sem saber de onde vem o assunto e fala-se de tudo.generosamente.

    ResponderEliminar
  26. Além disso, és um privilegiado. Logo no primeiro texto tiveste 26 comentários:)

    ResponderEliminar