quinta-feira, 7 de outubro de 2010

O rio à minha frente corre calmo, e eu estou preocupado com a Sra. D. Hortélia

José Magalhães

O rio à minha frente corre calmo, muito calmo, entrando suavemente no mar.

Espalhados pela margem, meia dúzia de pescadores esperam pacientemente que algum peixe se digne morder a bicha e ficar preso ao anzol. Lá mais longe, à minha direita, o farol velho, agora sem utilidade prática e o outro, recente, ainda com as cores de novo, orgulhoso das suas riscas vermelhas e brancas.

De vez em quando, entra na barra uma traineira. Vem da faina nocturna, e se tiver corrido bem, estará carregada de peixe para vender na lota da Afurada.

Lá fora, estou sentado no banco do passageiro do meu carro, está fresco. Não chega a ser frio. São oito da manhã e estão cerca de sete graus centígrados. O Inverno não vai ainda a meio, e nem tem sido rigoroso. Está um dia bonito.

Do local onde me encontro, consigo ver o mar, lá ao fundo. Não se notam quaisquer ondas. Não há vento. O céu, carregado de nuvens de um cinzento claro, não pronuncia chuva. Por entre elas, consegue ver-se um azul forte, com matizes mais claras. O sol, está escondido lá para sul. Uma ou outra gaivota sobrevoa a foz do rio. Está um silêncio enorme, só cortado uma vez ou outra, pela passagem de algum automóvel, mesmo por trás de mim.

E o meu pensamento corre, salta, grita. Não me deixa parar num sítio para o entender. E eu quero perceber o que ele me quer, o que ele me diz, que preocupações o afligem.

São tantas, que nem sei.

Sempre fui dado a preocupações. As que existiam, as que eu supunha que havia, e as que eu procurava no interior profundo de mim, para ver se valiam a pena.

Foi por isso que cultivei a minha angústia existencial, ao longo dos anos, com evidente sucesso. Hoje sou um mestre no assunto.

As preocupações de hoje, são comezinhas. As dores, cíclicas, nos costados e nas articulações, não são as que mais me afligem. Estão como que, de folga.

Na minha cabeça, numa atitude masoquista, procuro o que me pode vir a angustiar. Serão as doenças de algum familiar? Não, estão todos de boa saúde!

Serão os problemas do sr António, que eu soube existirem, ontem à noitinha? O sr António, o marido da sra que nos trata há dezenas de anos da casa e que trata graciosamente de velhinhos desamparados, anda com problemas de saúde complicados, mas, também não serão esses que me farão ficar preocupado! Está bem seguido medicamente e bem acompanhado

Procuro incessantemente. Nada!

Que coisa, mais não posso fazer do que me preocupar com o que não é, mas que eu possa supor que seja, para que assim possa saber o que seria, se fosse.

Está bem, assim já estou dentro do meu elemento. Já me sinto mais eu.

Mas, que posso eu imaginar, ou lembrar-me para que depois me possa preocupar?

De repente, os pensamentos da noite passada vieram de supetão, a preocupação pelo que seria feito da senhora.

Ontem, lá pelas dez da noite, ao chegar a casa, lembrei-me da sra d. Hortélia.

A sra d. Hortélia era uma amiga de minha mãe, talvez a sua maior amiga, de há muitos anos, julgo eu que até da infância, senão de certeza da juventude..

Um dia teve de fugir de casa.

Naquela altura ainda não havia qualquer organização que se preocupasse com a violência a que muitas mulheres estavam sujeitas na sua própria casa. Era assim e pronto. Que aguentassem, que era o remédio.

Ao longo do tempo de nada lhe tinham valido os seus cinco filhos. Nenhum a conseguira defender alguma vez, e mesmo eles, sofriam a bom sofrer com o tratamento que o pai lhes dava.

Ele, louco, tinha tanto de maravilhoso pai ou marido, como de verdugo do pior que se possa imaginar.

Como exemplo, dias havia em que ele, debaixo de algum ataque de loucura, cuja frequência aumentava a cada dia que passava, obrigava a mulher a dormir no chão, nem para o sofá da sala a deixava ir, e no seu lugar, deitava a cadela de raça Setter. Na manhã seguinte, todo ele era atenções, e se calhava num fim-de-semana, eles que eram amantes de desportos radicais, programava uma viagem, e consequente acampamento, ao Gerês, onde iriam viver mais dois dias de maravilhoso isolamento, no meio da natureza, como se nada de anormal se tivesse passado antes. As torturas tanto físicas como psicológicas eram frequentes e cada vez mais amiúde.

Um dia um dos filhos ganhou coragem e fugiu para o estrangeiro, indo para um dos países mais apetecíveis da altura, onde tudo se dizia ser permitido. Não esqueçamos que esta história se passou antes do golpe de estado de setenta e quatro.

Mais tarde, outro dos filhos homens também se foi para junto do irmão.

E depois foi a mãe. Uma noite, às escondidas, disfarçada, na tentativa de nunca mais ser vista. Quanto de desespero e ao mesmo tempo de coragem teve de ter para conseguir ir.

Abalou pela noite a dentro, atravessou a fronteira “a salto”, e já na “terra prometida” sujeitou-se a trabalhar de criada, empregada doméstica como aqui se diz nestes dias, para poder sobreviver. Os filhos que já tinham fugido, receberam-na, lá no país onde estavam, e apoiaram-na na medida das possibilidades que tinham.

Raramente ouvíamos falar dela, e se ouvíamos, era em surdina. O filho homem e as duas filhas que cá se mantiveram, diziam nada saber da mãe ou dos irmãos. E quando em conversa se lhes perguntava alguma coisa, só se falava do passado e dos momentos bons que tinham vivido nessa altura.

Aos poucos, estes três que ficaram, acabaram por sair naturalmente de casa, pelo casamento, dois deles, ou para irem trabalhar para outra cidade, a mais nova.

O velho malvado, acabou sozinho, a viver como um eremita a maior parte do tempo no meio da serra amarela, no Gerês. Nem sei se ainda é vivo.

Um dia, há alguns anos, à noite, já fora de horas, tocou o telefone. Sobressalto em casa dos meus pais. O que teria sucedido para alguém se atrever a telefonar àquela hora.

Uma voz desconhecida, com sotaque estrangeiro, respondeu ao nosso angustiado

- “sim?”

- “Hello, Maria?”

- “Não, respondi, sou…”

A voz mudou radicalmente

- “Zezinho, sou a …”

Não ouvi direito até ao fim, e tão pouco respondi. Olhei para a minha mãe e disse sumido

- “é a d. …”

De um salto, a minha mãe agarrou no telefone, e segundos depois as lágrimas vieram, e as palavras atabalhoadas, e as frases cortadas a meio, e a voz alterada, e….

A vontade de saber novidades eram tremenda e as frases saltavam de uns assuntos para os outros e voltavam depois aos mesmos, quase parecendo sem nexo. Aos poucos, a voz do outro lado, que também teve momentos de desnorte e choro entre-cortado, foi acalmando e a da minha mãe também.

O telefonema foi interminável. Mais de uma hora. Já não fazia mal que fosse a desoras. Tudo se perdoava.

No fim, a minha mãe teve de explicar tudo. Que a amiga estava bem de saúde e que vivia economicamente bem. Que não vivia com os filhos, mas que também não fazia mal. Que tinha uma casinha, um andar fornecido pelo estado, e dinheiro suficiente, e, que estava de férias em Portugal. Escondida, disfarçada, ainda com receio dele, do malandro, que se soubesse dela a procuraria para a matar, etc., etc., etc..

Dias depois veio o reencontro, que depois se repetiu anualmente. Nunca mais faltaram os telefonemas, lá de longe, do estrangeiro, mas sempre com a preocupação de nos lembrar que não poderíamos comentar fosse com quem fosse do paradeiro dela, ou mesmo que dela tínhamos noticias.

E os anos foram passando, devagar, ao ritmo da vida. E as doenças vieram. As dela, motoras, impedem-na de se deslocar. As da minha mãe diferentes, impedem-na de reconhecer ou lembrar-se já da sua maior amiga.

E os telefonemas começaram a rarear. E as visitas anuais também.

Agora raramente sei dessa amiga de minha mãe. Sei que, se bem que muito doente, necessita de um veículo para se locomover, tem de estar ainda viva, ou alguém nos teria dito já alguma coisa. Já passou dos oitenta há muito.

Toda a sua vida foi de sofrimento, pelo marido, pelos filhos, pela saúde, pelo rumo que a vida lhe foi impondo. Mesmo assim, a última vez que falei com ela, já faz quase um ano, a voz era a mesma. Com a mesma jovialidade e alegria que sempre lhe conheci. Mulher de uma força incrível, ultrapassou tudo, aguentou tudo, com a mesma alegria de sempre, sem apoios governamentais ou outros.

Há pessoas assim, sofredoras, capazes de tudo aguentarem.

Não sei porque me lembrei dela, mas quando aconteceu, fiquei como que comovido, e com uma vontade incrível de a reencontrar.

Que seria feito da senhora? Como estaria? Perguntas que, ao chegar a casa, vou tentar obter resposta, telefonando-lhe, lá para longe, para as estranjas. Estou um bocadinho preocupado com este silêncio tão comprido.



José Fernando Magalhães

(www.atributos-1.blogspot.com)

3 comentários:

  1. Fiquei emocionada. Espero que hoje tenhamos outras formas de reagir a este tipo de violência. Menos escondidas, mais corajosas, mais apoiadas...

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  2. Hoje, felismente há outras formas de reagir a este tipo de violência. As pessoas, na sua maioria mulheres, porque são elas as violentadas em maior número, sabem que há instituições de apoio para as vitimas de violentação, e com isso ganham um pouco mais de coragem para as denunciar.
    Estamos, no entanto, ainda muito longe de acabar com essa praga. Todos os dias ouvimos falar de casos e mais casos (antigamente haveria talvez mais e nem se ouvia falar deles), parecendo-me que tudo tem a ver com o nível educacional e cultural da nossa sociedade.
    Obrigado Augusta Clara e Clara Castilho, pelos vossos comentários.

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