(Continuação)
O crime de Afonso Ribeiro
Eu não queria; não era nas minhas intenções. Mas sinto que devo contar tudo a Vossa Senhoria que me permitiu, escutando-me com tanta bondade e sabedoria, saber sempre mais ainda das minhas coisas. Por isso vou contar pela primeira vez, talvez até para mim mesmo, a razão da minha perdição e porque o meu Senhor e Soberano me tirou para sempre da terra de minha mãe, condenando-me a não saber por certo aonde estou.
O meu foi um grande crime, ainda que resultado do amor que sempre tive pelo meu Senhor e Protetor, o nobre Sebastião Telo e por sua família. Nela entrara muito jovem deixando minha doce mãe e a minha terra amada. Muito cresci sob a infinita bondade do meu Protetor. Ele me ensinou tudo e logo fui feito seu pagem. Muitas vezes saímos de seu magnífico Palácio por Portugal e Espanhas, sendo o meu Senhor o mais amado de seus embaixadores pelo Rei.
Assim cheguei aos vinte anos, feliz e certo da vida.
Comigo cresceu, quase que paralelamente, Costança, a filha menor do meu Protetor. Ela era radiosa nos seus dezesseis anos. Bela, bondosa, gentil com todos. Parecia uma flor e o seu perfume. Não sabendo e não querendo, descobri o meu amor por Costança. Mas o mantinha escondido no mais profundo do meu coração.
Eu e ela éramos muito amigos. Estávamos juntos por muitas horas do dia. Belo então era passear pelo imenso jardim do Palácio ou pelas margens do Tejo que banhava as terras do Conde, meu Senhor.
Costança falava e ria sempre nesses passeios e eu me deixava levar pela sua voz e pelo seu riso cheio do sol que o rio refletia no nosso passear. Costança era a minha doce perdição.
Muitas vezes o Conde me comandava a missão de acompanhar Costança e suas duas amas no Paço. Aí mudávamos nos nossos gestos e eu me sentia como em solidão, ferido no coração, sem saber claramente porque. Na verdade, Costança não mudava em nada para comigo. Quando me via entristecido vinha ao meu encontro com a doçura de seu riso e de sua voz. Afonso, Afonso! Era doce sentir o meu nome na sua boca.
Vivia imaginando que Costança sabia do meu sentimento e que o correspondia. Então eu sonhava, sonhava coisas impossíveis.
Uma tarde de quase quatro anos atrás, que me parece a eternidade, me perdi para sempre. Eu estava na praça do Paço passeando e divagando na espera do momento de retornar ao Palácio. Era quase o entardecer pois se podia ver o sol que começava a esconder-se no longe, enquanto o marulhar das águas do Tejo se perdia numa luz sempre mais fraca de momento a momento.
Eu não tinha pensamentos, vagueava. Foi então que percebi um grupo de quatro jovens nobres, de mim conhecidos, que riam alacremente no meio da praça. Quanto mais eu me aproximava deles, mais alcançava os ditos que provocavam tantos risos. Foi quando escutei da boca do jovem D. Fernando de Castro o nome de Costança. Ele contava aos três amigos suas aventuras da Corte, rindo e provocando grandes risos. Então escutei o que contava de Costança, da minha doce e pura Costança, "esta é a mais disponível a doar as suas belezas que, em verdade, são tantas. Não nega nada e tudo dela se pode desfrutar".
Fiquei cego e acometi com furor o jovem Castro. Ele não teve nem mesmo o tempo de usar o seu espadim, nem os seus amigos de defendê-lo, que eu usava o meu para ferí-lo e defender a honra de Costança e de sua Casa.
Foi assim que tudo terminou para mim.
A minha perdição como assassino é como um naufrágio.
Toquei as areias dessas praias, mas nela cheguei sem forças com o medo de saber se realmente tudo fosse real ou se ainda me encontrasse perdido em meio às ondas sem fim.
F I M
Agora contei quase tudo da minha história, mas ela não acabou. Depois de quanto já sabe Vossa Senhoria, eu vos pergunto com todo o respeito: qual é o verdadeiro fim da história? Eu vivi tudo isso e mais o que a memória não soube retratar. Passando por uma tão viva experiência eu fiquei sendo alguém não de um mundo, como toda a gente, mas de dois: o de lá e o de cá.
Muitas vezes, como muito bem percebeu Vossa Senhoria que muito sabe, eu estava no mundo de cá, mas preso ao de lá; outras, não mais me lembrava da triste dualidade. Acabei por ficar quase sempre no plano do aqui, com suas descobertas. Vossa Senhoria perdoe o esdrúxulo do meu modo de dizer as coisas.
Agora sei que posso retomar o caminho do lá, pela infinita graça do meu Rei e Senhor. Porém, com os olhos no mar, tomado pelo infinito de um olhar branco, sem limites, de repente sinto a necessidade de voltar-me e procurar o perdido do sertão.
Para onde devo ir? Já estou caminhando para o meu distante lá quando duvido, ou estou preso para sempre por este cá de que duvido?
Tudo me está a memória retratando. Eu não sei quem sou e para onde vou. Estou só e cheio de companheiros que me parecessem surgir não do passado, mas do futuro.
Vossa Senhoria pode muito, pois vindes de longe e de outras terras.
terça-feira, 26 de outubro de 2010
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