domingo, 7 de novembro de 2010

O saber das crianças e a psicanálise da sua sexualidade –19 por Raúl Iturra.

(Continuação)

Se Cyrulnick não tivesse tido a vida que levou, como relatado na Revista Brasileira de Psicanálise , nunca teria trabalhado sobre resiliência como conceito. No entanto, a sua vida foi uma tragédia que soube ultrapassar. Boris Cyrulnik, o meu colega de ensino na Maison de Sciences de l’Homme, em Paris, teve uma vida azarada. Sem resiliência, criada no segundo que salvou a sua vida aos cinco anos, não seria o homem aberto e simpático que eu conheci. Da mesma maneira que eu fui salvo do pelotão de fuzilamento quando visitava, por razões académicas, o Chile de Allende. Não sei o que ele, como criança, deve ter pensado. Sei o que eu pensei quando se levantaram quarenta fuzis para me assassinar. Havia uma mulher que amava, que fez o possível e impossível para me salvar, uma filha adorada e outra no ventre da mãe das minhas filhas. Contudo, pensei: “Por boa causa morro”.

Tinha sido enviado para observar a via chilena para o socialismo pelo meu Catedrático Sir Jack Goody (outrora prisioneiro dos nazis em Auschwitchz); a ele e a outros, devo a minha vida. Ao não ser fuzilado, a minha alma ficou baloma kiriwina, sem rumo nem destino. A minha fortaleza, definida por esse salvo Boris Cyrulnick, que eu considero um herói universal, como resiliência, salvou-me. Como havia acontecido anos antes com ele. É por isso que comparo as histórias, a minha simples, a dele mais complexa, um luto familiar do qual, como teria dito Alice Miller, nasceu um desenho, uma criação. Essa psicologia de etologia clínica que ela pratica com a qual tem salvo a vida e a dignidade a tantos. A capacidade de resistência de Boris nasceu de um trauma infantil, o que o leva a dizer com simplicidade que não é evidente que de uma infância infeliz venha a nascer uma vida miserável. Dá para comparar essa inaudita capacidade de construção humana, como diz no seu livro, com o romance Os miseráveis de Victor Hugo . Esses miseráveis não são pessoas pobres ou sem capacidade para emergir de uma vida sem destino, são, antes, pessoas capazes de usar o seu poder em prol de uma justiça mal entendida. Mal entendida, ao perseguir um ser humano que soube mudar a sua vida de pobre e ladro para a de um senhor não apenas de posse, bem como de ideias de justiça social clarividentes, capaz de lutar contra o poder absoluto sem rancor e com muita bonomia.
A resiliência é retirada do conceito grego oxymoron , essa forma de falar que envolve dentro da mesma palavra, conceitos contraditórios, como definido na nota de rodapé desta página. É deste conceito que Cyrulnick começa a criar as suas ideias de sobrevivência. Cyrulnik fala e escreve particularmente sobre o que viveu como experiência pessoal.

O menino Boris – por vezes mencionado como Bernard nos seus livros – foi salvo por uma mulher que o conhecia. Ela empurrou-o para dentro de uma ambulância, no exacto momento em que os seus pais e familiares eram deportados pela Gestapo para os campos de extermínio. Depois disso nunca mais os encontrou. Passou por vários abrigos e orfanatos e tornou-se ele próprio um grande resiliente. Vencedor na vida, especializou-se em conhecer melhor o comportamento humano, principalmente o dos denominados traumatizados. Como revelou numa entrevista transmitida na televisão francesa, carrega sempre no bolso, coberto por um lenço, o trauma que abalou toda a sua infância. Quando necessário, puxa do bolso um pedacinho daquele conteúdo e “tricota” algo criativo em forma de estudos, palestras e livros. Portanto, cada livro de Cyrulnik trata também de sua própria resiliência em permanente evolução. O seu depoimento serve de ajuda, como “tutor de resiliência”, para os grandes feridos da vida. Para a mulher que o salvou, Marguerite Farge, ele pleiteou a Medalha dos Justos entre os Justos, que ela recebeu em 1997.
Falar de amor à beira do abismo refere-se àqueles que superam um traumatismo e experimentam muitas vezes uma impressão de sursis , que multiplica o gosto da felicidade e o prazer de viver o que ainda é possível. Neste ensaio vibrante sobre a vida, o autor mostra que mesmo os que têm graves feridas afectivas podem transformá-las em grande felicidade. O título traz uma figura de retórica que o autor transforma em conceito para caracterizar os resiliêntes. Trata-se do oximoro, que consiste em associar dois termos antinómicos: falar de amor/beira do abismo. Aqueles que vencem um traumatismo conseguem fazer coabitar doravante o horror e a poesia, o desespero e a esperança, a tortura gelada e o calor humano. Esse título paradoxal surpreende-nos; é uma nova e rica contribuição que o autor desenvolve ao longo da obra.
Cyrulnik considera, no seu amor à beira do abismo, que, depois de um trauma psíquico, como o trauma físico, instala-se uma perda de tecido afectivo, com necrose e escarras. “É carregar a morte dentro de si”. Acrescenta: “Todo traumatizado é obrigado a mudar, senão fica morto”.

A obra de Cyrulnick passou a ser o panteão glorificante da salvação de muitos que têm sofrido desgarros na sua vida infantil, mas são capazes de os superar, tal como o autor que leva no bolso o trauma guardado dentro de um lenço .

Entre as crianças por mim observadas ao longo dos meus quarenta anos de trabalho, sou capaz de apreciar os desvios que elas fazem somente para não passarem pelo trilho do murmúrio dos seus fantasmas. Ideia retirada de uma das obras de Cyrulnick onde, ele próprio, acaba por confrontar esses meios que fazem dele um ser humano criativo, que guarda a força que dá o sofrimento, para construir obra. Como muitos de nós, ao longo da vida, tentamos esquecer as nossas tristezas e limitações emotivas, no meu caso, recorrendo à escrita. No dia em que não escrevo, sinto um dedilhar desse passado que no presente me atormenta na criação dos meus descendentes. Sempre pensamos estar a fazer o melhor, criamos rituais que, se não contribuem em nada, parece-nos ficarmos sem alternativas. Todavia, há sempre uma criação à nossa espera. Mas o que mata? A pouco e pouco essa resiliência acaba por ser parte da nossa condenação em vida. Especialmente se estamos ao pé de pessoas que têm sofrido traumas e não sabem usar essa capacidade oxymoron ou resiliência, como já definido dentro deste texto que hoje escrevo. . Cyrulnik, que foi capaz de sobreviver e criar novas ideias para apoiar as pessoas traumatizadas na infância, foi capaz de escrever não apenas textos sobre resiliência, bem como comentar como ela deve ser tratada. No livro citado em nota de rodapé, no Capítulo que corresponde, diz: Governados pela imagem que se faz de nós próprios.
A criança no decorrer das suas interacções quotidianas, aprende a contestar perante si, a ideia estruturada por ela própria, na relação de “ela com os outros”. Todo o ser vivente inevitavelmente reage às percepções que advêm do mundo externo, mas um ser humano pequeno, a partir do sexto mês de idade, contesta também as representações formuladas por ele ou representações “de ele com os outros”, construídas pelo próprio que impregnam a sua memória. Um ser humano recém-nascido apenas sobrevive se tem junto de si as imagens de referência de carinho, de vínculo protector, de afeição ou de apego emotivo. Sozinho, não tem nenhuma alternativa para se desenvolver, para crescer. No desenvolvimento espontâneo dos factos biológicos, a imagem afectiva, é, na maioria das vezes, a imagem da mãe, que tem levado a criança dentro de si. No entanto, toda a pessoa que tenha alimentado com amor e boa vontade, outra mulher que não seja a mãe, ou um homem ou, ainda, uma instituição, passa a assumir a função de figura terna de apego, composta de imagens afectivas, de sentimentos afectivos e de factos carinhosos endereçados ao recém-nascido. Entre gesto e gesto de ternura e simpatia, esta realidade sentimental, sensorial, emotiva, impregna-se na memória do mais novo e ensina-lhe a pôr atenção a comportamentos certos que advêm das figuras de afeição. Toda a mãe infelizmente vencida pela sua história, pelo seu marido ou pelo contexto social, apenas pode emitir sentimentos de mulher deprimida: face pouco expressiva, falta de sedução corporal, olhares desviados dos outros, uma verbalização decaída. Por causa desse patamar de sentimentos da mãe, que invade e influência os sentires dos outros, o bebé aprende a reagir com comportamentos de decaimento emotivo. A partir do primeiro ano de idade, é-lhe suficiente perceber essa figura de afecção, como uma imagem de apego emotivo infeliz, causando dor. O bebé não reage apenas a essa percepção de mãe triste, a sua reacção é do amor à beira do precipício, da falta de carinho emotivo aprendendo tristeza com antecedência, porque é infelicidade o que lhe é ensinado pela figura afectiva.

Notas:

Formato Documento Electrónico (ISO)
CZERNY, Josette. Reseñas de libros. Rev. bras. psicanál. [online]. dic. 2007, vol.41, no.4 [citado 30 Diciembre 2008], p.161-164. Disponible en la World Wide Web: http://pepsic.bvs-psi.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0486-641X2007000400016&lng=es&nrm=iso . ISSN 0486-641X.


Biografia completa e trabalho, em: http://fr.wikipedia.org/wiki/Boris_Cyrulnik
Victor-Marie Hugo (Besançon, 26 de fevereiro de 1802 — Paris, 22 de maio de 1885) foi um escritor e poeta francês de grande actuação política no seu país. É autor de Les Misérables, a sua melhor peça, e de Notre-Dame de Paris, entre outras obras. No livro Os Miseráveis, faz quase uma premonição de resiliência: narra a história de um self made-man, Jean Valjean, sujeito que foge da prisão e reconstrói a sua vida através do trabalho. Valjean abre uma empresa e, através dela, a região onde habita prosperidade; além disso, usa a sua fortuna em obras de caridade para ajudar os pobres. As suas boas obras são interrompidas apenas quando um polícia – um agente do Estado – decide interferir arbitrariamente nas actividades privadas da sociedade civil. Os Miseráveis, portanto, trazem claramente a filosofia política de Victor Hugo. É um mundo onde há cooperação – e não luta – entre as classes; onde o empreendedor desempenha uma função essencialmente benéfica para todos; onde o trabalho é a via principal de aprimoramento ou embelezmento pessoal e social; onde a intervenção estatal por motivos moralistas – seja do policial ou do revolucionário obcecado pela justiça terrena - é um dos principais riscos para o bem de todos que será gerado espontaneamente pelos indivíduos privados.
An oxymoron (plural oxymorons, more rarely, oxymora) é uma forma de falar figurativa ( figure of speech ) que combina normalmente dois termos contraditórios (contradictory). Oxymoron é uma palavra introduzida como empréstimo à maneira de falar, da língua grega (loanword Greek oxy) ("agudo" ou "pontudo") e moros ("aborrecido"). Assim, a palavra oxymoron é ela própria um oxymoron ou figura retórica do falar.
Oxymorons é uma figura quase marginal da fala (proper subset) derivada das expressões de términos contraditórios (contradictions in terms). O que distingue oxymorons de outras paradoxas e contradições do falar, é o facto de serem usadas propositadamente para efeitos retóricos, onde a contradição é apenas aparente. Aparente, porque a combinação de dois conceitos induz ou cria uma expressão nova, como por exemplo:"ser cruel para ser bondoso ou "grupo de indivíduos autónomos. Texto completo em: http://en.wikipedia.org/wiki/Oxymoron


Sursis é uma metáfora usada por Cyrulnick: Sursis é um instituto de Direito Penal com a finalidade de permitir que o condenado não se sujeite à execução de pena privativa de liberdade de pequena duração, ou seja, permite que, mesmo condenada, uma pessoa não fique na cadeia. Sursis quer dizer suspensão, derivado de surseoir, que significa suspender.
Se o juiz define o prazo de dois anos para o sursis, o condenado ficará durante esse período em observação. Se não praticar nova infração penal e cumprir as determinações impostas pelo juiz, este, no final do período de prova, determinará o fim da pena. Se durante o período de prova houver revogação do sursis, o condenado cumprirá a pena que se achava com a execução suspensa.
Cyrulnik, Boris, 2003 : Le murmure des fantômes, Éditions Odile Jacob, Paris, retirado de : http://www.comprar-livro.com.br/livros/1853362127/ (citado anteriormente).
Parte do texto está retirado da minha experiência, outra, especialmente a vida de Cyrulnick, do texto antes citado, que pode ser lido em: http://pepsic.bvs-psi.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0486-641X2007000400016&lng=es&nrm=iso, denominado: Falar de amor à beira do abismo, Boris Cyrulnik. São Paulo: Martins Fontes, 2006, 181 pp, em: Rev. bras. Psicanál v.41 n.4 São Paulo dic. 2007, da autoria de Josette Czerny. O livro em língua lusa é uma tradução do livro em francês: Parler d'amour au bord du gouffre, Ódile Jacobs, 2004, Paris, 256 páginas, pode-se aceder a extractos, em: http://www.odilejacob.fr/catalogue/index.php?op=par_titre&cat=0207&count=0&id_livre=1993&option=&desc=quatrieme. Um desses extractos, retirados do capítulo que cito a seguir, diz: Gouvernés par l'image qu'on se fait de nous-même, título que em português seria: “Governados pela imagem que fazemos de nós próprios". Esse capítulo tem ideias que traduzi para o texto central, guardei o original em francês, para esta nota de rodapé, que, entre outras ideias, desenvolve a seguinte:
L'enfant a appris, au cours des interactions quotidiennes, à répondre à l'idée qu'il se fait de " lui avec les autres ". Tout être vivant réagit inévitablement à des perceptions, mais un petit humain, dès le sixième mois, répond aussi à la représentation de " lui avec les autres " qui s'est construite en s'imprégnant dans sa mémoire. Un nouveau-né ne peut survivre que s'il dispose autour de lui de figures d'attachement. Seul, il n'a aucune chance de se développer. Dans le déroulement spontané des faits biologiques, la figure d'attachement est presque toujours la mère qui l'a porté. Mais toute personne qui veut bien s'occuper du nourrisson, une autre femme, un homme ou une institution, assume cette fonction de figure d'attachement composée d'images, de sensorialités et d'actes adressés au nouveau-né. De gestes en gestes, ce réel sensoriel s'imprègne dans la mémoire du petit et lui apprend à attendre certains comportements qui viendront de ces figures d'attachement. Une mère rendue malheureuse par son histoire, son mari ou son contexte social, émettra une sensorialité de femme déprimée : visage peu expressif, absence de jeux corporels, regards détournés, verbalité morne. Dans un tel bain sensoriel qui traduit le monde mental de la mère, le bébé apprend à réagir par des comportements de retrait. Dès la fin de la première année, il lui suffit de percevoir cette figure d'attachement malheureuse pour qu'il attende des interactions de mère triste. Le bébé ne réagit pas seulement à ce qu'il perçoit, il répond à ce qu'il guette, il anticipe ce qu'il a appris.
Dès la troisième année, le petit, arrivant à l'âge de l'empathie, devient capable de répondre aux représentations qu'il se fait des représentations du monde mental de sa mère, de ses motivations, de ses intentions et même de ses croyances : " Elle va encore croire que c'est moi qui ai mangé le chocolat, alors que c'est mon frère. " Un bébé qui se développe dans un monde glacé s'attend à ce que les autres lui apportent la glace. Il pense presque : " Toute relation affective provoque le froid. " À l'inverse, un enfant qui se sent aimé se croit aimable puisqu'il a été aimé. Cette empreinte dans sa mémoire, à l'occasion de la banalité des gestes de la survie, a donné à l'enfant une représentation de soi confiante et aimable, à laquelle il répond quand il entre en relation.
Cet apprentissage donne un style affectif durable qui s'exprime encore lors des premières rencontres amoureuses : " Quand je pense à qui je suis, je m'attends à ce qu'elle me méprise. " Le jeune peut aussi penser : " Quand je pense à qui je suis, je crois qu'elle va m'accepter. " Cette représentation de " moi avec un autre " est une co-construction qui dépend des rencontres mais peut évoluer, comme tout phénomène de mémoire, vers l'effacement, le renforcement ou la métamorphose. Texto em : http://www.psychotherapeutes.net/amour-gouffre.htm.

(Continua)

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