terça-feira, 30 de novembro de 2010

Para uma redefinição da União Económica e Monetária Europeia: da crítica dos seus fundamentos à crítica da crise actual - 3

(Continuação)

Júlio Mota, Luís Lopes e Margarida Antunes*

FALSA EVIDÊNCIA N.º 1: OS MERCADOS FINANCEIROS SÃO EFICIENTES

Hoje, todos os observadores constatam um facto: o papel fundamental que desempenham os mercados financeiros no funcionamento da economia. É o resultado de uma longa evolução, que começou no final dos anos setenta. Qualquer que seja a forma de a analisar, esta evolução marca uma ruptura clara, tanto quantitativa como qualitativa, em relação às décadas anteriores. Sob pressão dos mercados financeiros, a regulação geral do capitalismo modificou-se profundamente, dando origem a uma nova forma de capitalismo, que alguns apelidaram de “capitalismo patrimonial”, de “capitalismo financeiro” ou ainda de “capitalismo neoliberal”.

Estas mutações encontraram a sua justificação teórica no postulado da eficiência informacional dos mercados financeiros. De facto, segundo este postulado, importa desenvolver os mercados financeiros, garantir que eles possam operar tão livremente quanto possível, porque são o único mecanismo de afectação eficiente do capital. As políticas obstinadamente levadas a cabo ao longo dos últimos trinta anos estão em conformidade com esta recomendação. Trata-se de criar um mercado financeiro integrado a nível mundial, em que todos os agentes (empresas, famílias, Estados, instituições financeiras) podem negociar qualquer tipo de valor mobiliário (acções, obrigações, dívidas, derivados, divisas) para qualquer maturidade (longo prazo, médio prazo, curto prazo). Os mercados financeiros têm vindo a assemelhar-se aos mercados “sem fricção” dos manuais: o discurso económico conseguiu recriar a realidade. Sendo os mercados cada vez mais “perfeitos”, no sentido da teoria económica dominante, os analistas acreditaram que o sistema financeiro estava agora muito mais estável do que no passado. A “grande moderação” — este período de crescimento económico sem aumento de salários que os Estados Unidos viveram entre 1990 e 2007 — pareceu confirmá-lo.

Ainda hoje, o G20 continua a defender a ideia de que os mercados financeiros são o mecanismo adequado para a afectação de capital. A primazia e a integridade dos mercados financeiros continuam a ser os objectivos finais da sua nova regulação financeira. A crise não é interpretada como um resultado inevitável da lógica da desregulamentação dos mercados, mas sim como uma consequência da desonestidade e da irresponsabilidade de alguns agentes financeiros, mal enquadrados pelos poderes públicos.
No entanto, a crise encarregou-se de demonstrar que os mercados não são eficientes e que também não conduzem à afectação eficiente do capital. As consequências desta realidade factual são imensas, em matéria de regulação e de política económica. A teoria da eficiência assenta na ideia de que os investidores procuram e encontram a informação mais fiável possível sobre o valor dos projectos alternativos que disputam entre si o financiamento. A acreditar nesta teoria, o preço que se estabelece no mercado reflecte as decisões dos investidores e sintetiza toda a informação disponível: constitui, portanto, uma boa estimativa do efectivo valor dos títulos. Ora, pressupõe-se que este valor sintetize toda a informação necessária para orientar a actividade económica e, deste modo, a vida social. Assim, o capital é investido nos projectos mais rentáveis e deixa os que são menos eficientes. Esta é a ideia central desta teoria: a concorrência financeira gera preços justos, os quais constituem sinais fiáveis para os investidores, orientando eficazmente o desenvolvimento económico.

Mas a crise veio confirmar os vários trabalhos críticos que tinham posto em causa esta ideia. A concorrência financeira não gera necessariamente preços justos. Pior, a concorrência financeira é muitas vezes desestabilizadora e leva a movimentos de preços excessivos e irracionais, as bolhas financeiras especulativas.

O principal erro da teoria da eficiência dos mercados financeiros consiste em transpor para os produtos financeiros a teoria usada para os mercados de bens comuns. Nestes mercados, a concorrência é parcialmente auto-reguladora devido ao que se chama a “lei” da oferta e da procura: quando o preço de um bem sobe, os produtores aumentam a oferta, enquanto os compradores reduzem a procura; em consequência, o preço irá descer e chegar perto do seu nível de equilíbrio. Por outras palavras, quando o preço de um bem sobe, as forças de mercado tendem a impedir e depois a inverter esse aumento. A concorrência produz o que se chama “feedbacks negativos”, ou seja, forças de repercussão em sentido oposto, na direcção oposta à do choque inicial. A ideia de eficiência decorre de uma transposição directa deste mecanismo para os mercados financeiros.

Ora, para estes últimos, a situação é muito diferente. Quando o preço aumenta, é comum observar-se, não uma diminuição, mas um aumento na procura! Na verdade, o aumento nos preços significa uma rentabilidade maior para os detentores dos títulos, devido às mais-valias realizadas. O aumento de preços atrai assim novos compradores, o que reforça ainda mais o aumento inicial. As promessas de bónus estimulam os traders a reforçar ainda mais este movimento. Até se verificar um incidente, imprevisível mas inevitável, que provoque a reversão das expectativas e o crash. Este fenómeno, digno dos rebanhos de carneiros panúrgicos, é um processo de “feedbacks positivos” que agrava os desequilíbrios. É a bolha especulativa: um aumento cumulativo de preços que se auto-alimenta. Este processo não produz preços justos, mas, antes pelo contrário, produz preços inadequados.

A posição preponderante que os mercados financeiros ocupam não pode assim conduzir a nenhuma eficiência. Pior ainda, é uma fonte permanente de instabilidade, como é evidenciado pela série ininterrupta de bolhas especulativas conhecidas desde há 20 anos: Japão, Sudeste Asiático, Internet, Mercados Emergentes, Imobiliário, Titularização. A instabilidade financeira traduz-se desta forma nas fortes flutuações das taxas de câmbio e das Bolsas, claramente sem qualquer relação com os fundamentais da economia. Esta instabilidade, nascida no sector financeiro, propaga-se à economia real através de vários mecanismos.
Para reduzir a ineficiência e a instabilidade dos mercados financeiros, sugerimos quatro medidas:

Medida n.º 1: Compartimentar estritamente os mercados financeiros e as actividades dos agentes financeiros, proibir aos bancos especularem por sua própria conta, para evitar a propagação de bolhas especulativas e crashs.

Medida n.º 2: Reduzir a liquidez e a especulação desestabilizadora, através do controlo dos movimentos de capitais e de impostos sobre as transacções financeiras.

Medida n.º 3: Restringir as transacções financeiras às que correspondam às necessidades da economia real (por exemplo, CDS apenas aos detentores de títulos segurados, etc.).

Medida n.º 4: Estabelecer limites máximos para a remuneração dos traders.


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FALSA EVIDÊNCIA N.º 2: OS MERCADOS FINANCEIROS FAVORECEM O CRESCIMENTO ECONÓMICO

A integração financeira alcandorou o poder da finança ao seu zénite, na medida em que unificou e centralizou a propriedade capitalista à escala global. Agora é a finança que determina as normas de rentabilidade exigidas pelo conjunto de todos os capitais. O projecto era o de a finança de mercado substituir o sistema de financiamento bancário dos investimentos. Projecto que aliás falhou, uma vez que hoje, globalmente, são as empresas que financiam os accionistas e não o contrário. A governança das grandes empresas foi, no entanto, profundamente transformada para corresponder às normas de rentabilidade do mercado. Com a ascensão dominante do valor accionista, instituiu-se uma nova concepção da empresa e da gestão, pensadas como estando ao serviço exclusivo do accionista. A ideia de interesse próprio comum dos diferentes interessados na vida da empresa desapareceu. Os gestores das empresas cotadas na Bolsa têm agora a principal missão de satisfazer o desejo de enriquecimento dos accionistas e nada mais. Consequentemente, deixam eles próprios de ser assalariados, como mostra bem o aumento desmesurado das respectivas remunerações. Como sugere a teoria do “agenciamento”, trata-se de fazer com que os interesses dos gestores passem a estar em convergência com os dos accionistas.

Uma ROE (“Return on Equity” ou rentabilidade dos capitais próprios) de 15% a 25% passa a ser a norma imposta pelo poder da finança às empresas e aos assalariados. A liquidez é o instrumento deste poder, permitindo a todo o momento aos capitais não satisfeitos de mudarem para outras paragens. Confrontados com este poder, os assalariados, tal como a soberania política, surgem, pela sua fragmentação, em situação de inferioridade. Esta situação de desequilíbrio leva a exigências de lucros irrazoáveis, porque definham o crescimento económico e conduzem a um aumento contínuo das desigualdades de rendimentos. Por um lado, as exigências de lucros inibem fortemente o investimento: quanto mais elevada for a rentabilidade exigida, mais difícil é encontrar projectos que sejam suficientemente rentáveis para a satisfazer. As taxas de investimento continuam a ser historicamente fracas na Europa e nos Estados Unidos. Por outro lado, esses requisitos provocam uma pressão constante sobre a baixa dos salários e sobre o poder de compra, o que não é favorável à procura. A travagem simultânea do investimento e do consumo conduzem a um baixo crescimento e a um desemprego endémico. Os países anglo-saxónicos têm procurado opor-se a esta tendência através do aumento crescente do endividamento das famílias e através de bolhas financeiras especulativas, que criam uma riqueza fictícia, permitindo o crescimento do consumo sem salários, mas que acabam por redundar em crashs.

Para ultrapassar os efeitos negativos dos mercados financeiros sobre a actividade económica, colocamos em debate três medidas:

Medida n.º 5: Reforçar significativamente os contra-poderes nas empresas, para obrigar as direcções a ter em conta os interesses de todas as partes.

Medida n.º 6: Aumentar significativamente a imposição fiscal sobre os rendimentos muito elevados, para desencorajar a corrida a rendimentos insustentáveis.

Medida n.º 7: Reduzir a dependência das empresas face aos mercados financeiros, desenvolvendo uma política pública de crédito (taxas preferenciais para as actividades prioritárias no plano social e ambiental)

FALSA EVIDÊNCIA N.º 3: OS MERCADOS AJUÍZAM BEM A SOLVABILIDADE DOS ESTADOS


Segundo os defensores da eficiência dos mercados financeiros, os operadores do mercado têm em conta a situação objectiva das finanças públicas para avaliar o risco de subscrição de um empréstimo ao Estado. Tomemos o caso da dívida grega: os operadores financeiros e os políticos decidem exclusivamente na base de avaliações financeiras para avaliar a situação. Assim, quando a taxa de juro exigida à Grécia aumentou para mais de 10%, todos concluíram que o risco de incumprimento estava próximo: se os investidores exigem um tal prémio de risco, é porque o perigo é extremo.

Trata-se de um profundo erro, quando se conhece a verdadeira natureza da avaliação pelos mercados financeiros. Não sendo os mercados financeiros eficientes, geram muito frequentemente preços totalmente dissociados dos “fundamentais económicos”. Nestas circunstâncias, não é razoável confiar exclusivamente nas avaliações financeiras para julgar uma determinada situação. Avaliar o valor de um título financeiro não é uma operação que se compare a medir uma grandeza objectiva, como por exemplo, a estimar o peso de um objecto. Um título financeiro é um direito sobre rendimentos futuros: para o avaliar é necessário prever o que será este futuro. Trata-se de uma questão de julgar, não de medida objectiva, porque no momento t, o futuro não está de forma nenhuma predeterminado. Nas salas dos mercados financeiros, trata-se só do que os operadores imaginam o que vai ser. O preço de um activo financeiro resulta de um acto de julgar, de uma crença, de uma aposta no futuro: não há nenhuma garantia de que os juízos feitos pelos mercados financeiros tenham qualquer superioridade sobre outras formas de julgar.

Sobretudo, a avaliação financeira não é neutra: afecta o objecto medido, compromete e constrói o futuro que ela própria imagina. Assim, as agências de rating desempenham um papel importante na determinação das taxas de juro nos mercados de obrigações, através da atribuição de notações de risco marcadas por forte subjectividade e, até mesmo, pelo desejo de alimentar a instabilidade, fonte de lucros especulativos. Ao degradar a notação de um Estado, estas agências aumentam a taxa de juro cobrada pelos actores financeiros para adquirir os títulos da dívida pública desse Estado e, consequentemente, aumentam por aí mesmo o risco de falência que anunciaram.

Para reduzir a influência da psicologia dos mercados no financiamento dos Estados, colocamos em debate duas medidas:

Medida n.º 8: As agências de rating não devem ser autorizadas a apoiar arbitrariamente a elevação das taxas de juro nos mercados das obrigações pela degradação da notação financeira de um Estado: dever-se-ia regulamentar as suas actividades, exigindo que as notações resultem de um cálculo económico transparente.

Medida n.º 8bis: Libertar os Estados da ameaça dos mercados financeiros, garantindo a recompra dos títulos públicos por parte do BCE.

FALSA EVIDÊNCIA N.º 4: A FORTE E RÁPIDA SUBIDA DA DÍVIDA PÚBLICA RESULTA DE UM EXCESSO DE DESPESA

Michel Pebereau, um dos “padrinhos” da banca francesa, descrevia, em 2005, num desses relatórios oficiais ad hoc, uma França sufocada pela dívida pública e a sacrificar as gerações futuras, ao permitir-se despesas sociais descomunais. O Estado a endividar-se como um pai alcoólico que bebe acima das suas posses: esta é a visão normalmente propagandeada pela maioria dos editorialistas. A recente explosão da divida pública na Europa e no mundo deve-se, porém, a uma outra coisa: aos planos de salvamento da finança e, especialmente, à recessão causada pela crise bancária e financeira, que começou em 2008: o défice público médio na zona euro era apenas de 0,6% do PIB em 2007, mas a crise fê-lo passar para 7% em 2010. A dívida pública aumentou, ao mesmo tempo, de 66% para 84% do PIB.

No entanto, a subida da dívida pública, em França e em muitos países europeus, foi inicialmente moderada e anterior a esta recessão: a subida tem origem, fundamentalmente, não numa tendência ascendente das despesas públicas — já que estas, em proporção do PIB, têm, pelo contrário, níveis estáveis ou mesmo em declínio na UE, desde o início dos anos 90 — mas sim na erosão das receitas públicas, devido ao fraco crescimento económico nesse período e à contra-revolução fiscal levada a cabo pela maioria dos governos nestes últimos vinte e cinco anos. Em termos de mais longo prazo, a contra-revolução fiscal tem continuamente alimentado o empolamento do volume da dívida, de recessão em recessão. Assim, em França, um recente relatório parlamentar calculou em cerca de 100 mil milhões de euros o custo, em 2010, das reduções de impostos feitas entre 2000 e 2010, mesmo sem incluir as isenções das contribuições sociais (30 mil milhões) e outras “despesas fiscais”. Na ausência de harmonização fiscal, os Estados europeus têm-se envolvido numa concorrência fiscal, baixando os impostos sobre as empresas, sobre as pessoas de altos rendimentos e sobre os grandes valores patrimoniais, as grandes fortunas. Mesmo que o peso relativo destas componentes varie de país para país, a subida quase geral dos défices públicos e dos rácios da dívida na Europa, no decurso destes últimos trinta anos, não resulta principalmente de um descontrolo condenável da despesa pública. Um diagnóstico que, obviamente, abre outros caminhos para além da sempiterna redução da despesa pública.

Para restaurar um debate público informado sobre a origem da dívida e, portanto, sobre os meios para a superar, colocamos em debate uma proposta:

Medida n.º 9: Realizar uma auditoria pública e de cidadania sobre a dívida pública, para determinar a sua origem e conhecer a identidade dos principais detentores de títulos de dívida e quais os montantes detidos.

FALSA EVIDÊNCIA N.º 5: É NECESSÁRIO REDUZIR AS DESPESAS PARA REDUZIR A DÍVIDA PÚBLICA

Mesmo que o aumento da dívida pública resultasse em parte do aumento das despesas públicas, reduzir as despesas não contribuiria necessariamente para a solução. Porque a dinâmica da dívida pública pouco tem a ver com a de uma família: a macroeconomia não é redutível à economia doméstica. A dinâmica da dívida depende na sua grande generalidade de vários factores: do nível do défice primário, mas também da diferença entre a taxa de juro e a taxa de crescimento nominal da economia.
Pois, se esta última taxa for inferior à taxa de juro, a dívida vai aumentar mecanicamente por causa do "efeito bola de neve": o montante dos juros explode e o défice total (incluindo os juros da dívida) também. Assim, no início de 1990, a política do franco forte, conduzida por Beregovoy, e mantida apesar da recessão de 1993-94, levou a uma taxa de juro mais elevada que a taxa de crescimento, o que explica o aumento da dívida pública da França durante esse período. É o mesmo mecanismo que explica o aumento da dívida, na primeira metade da década de 80, sob o impacto da revolução neoliberal e das políticas de altas taxas de juro conduzidas por Ronald Reagan e Margaret Thatcher.

Mas a própria taxa de crescimento económico não é, em si mesmo, independente das despesas públicas: a curto prazo, a existência de despesas públicas estáveis limita a dimensão das recessões (“estabilizadores automáticos”); a longo prazo, os investimentos e as despesas públicas (educação, saúde, investigação, infra-estruturas...) estimulam o crescimento. É errado dizer que todo e qualquer défice faz crescer, no mesmo montante, a dívida pública, ou que qualquer redução do défice reduz a dívida de igual montante. Se a redução do défice tem efeitos negativos sobre a actividade económica, a dívida tornar-se-á cada vez mais pesada. Os comentadores liberais sublinham que alguns países (Canadá, Suécia, Israel) realizaram cortes brutais nas suas contas públicas nos anos 90 e que conseguiram imediatamente uma recuperação económica, um forte crescimento. Mas isto só é possível se o ajustamento se referir a um país isolado, que ganhe rapidamente competitividade sobre os seus concorrentes. Mas, obviamente, esquecem os adeptos dos ajustamentos estruturais europeus que os países europeus têm como principais clientes e concorrentes os outros países europeus, uma vez que a UE é globalmente pouco aberta ao exterior. Uma redução simultânea e maciça da despesa pública dos países da UE só pode ter como efeito o agravamento da recessão e, portanto, um novo avolumar da dívida pública.

Para evitar que a recuperação das finanças públicas não venha a provocar um desastre social e político colocamos em debate duas medidas:

Medida n.º 10: Manter o nível de protecção social, ou mesmo melhorá-lo (subsídio de desemprego, de habitação…).

Medida n.º 11: Aumentar o esforço orçamental em matéria de educação, de investigação, de investimento na reconversão ambiental... para materializar as condições de um crescimento sustentável, capaz de induzir uma significativa diminuição do desemprego.

FALSA EVIDÊNCIA N.º 6: A DÍVIDA PÚBLICA TRANSFERE PARA OS NOSSOS NETOS OS ENCARGOS DOS NOSSOS EXCESSOS

É uma outra declaração falaciosa, que confunde a economia das famílias com a macroeconomia, segundo a qual a dívida seria uma transferência de riqueza em detrimento das gerações futuras. A dívida pública é, com certeza, um mecanismo de transferência de riqueza, mas, sobretudo, uma transferência dos contribuintes comuns para quem vive dos rendimentos.
De facto, com base na crença, raramente confirmada na realidade, de que baixando os impostos estimular-se-ia o crescimento e, no final de tudo, aumentar-se-iam as receitas públicas, os Estados europeus, depois de 1980, puseram-se a imitar os Estados Unidos, com uma política sistemática de minimização fiscal. A redução dos impostos e das cotizações sociais patronais multiplicaram-se (impostos sobre os lucros das empresas, sobre os rendimentos dos mais ricos e sobre o património, sobre as contribuições patronais para a segurança social...), mas o seu impacto sobre o crescimento económico manteve-se muito incerto. Estas políticas fiscais anti-redistributivas agravaram, assim, de forma cumulativa, as desigualdades sociais e os défices públicos.

Estas políticas fiscais forçaram os governos a endividarem-se junto dos detentores de mais elevados rendimentos e dos mercados financeiros para financiar os défices entretanto criados. É aquilo que poderia chamar-se um “efeito jackpot”: com o dinheiro economizado nos impostos, os ricos puderam adquirir títulos de dívida pública (que rendem juros), títulos esses emitidos para financiar os défices públicos causados pelos cortes de impostos... O serviço da dívida pública em França representa assim 40 mil milhões de euros anuais, quase tanto como as receitas do imposto sobre o rendimento. Um golpe tanto mais brilhante quanto, em seguida, se conseguiu convencer o público de que a dívida pública se devia aos funcionários públicos, aos reformados e aos doentes.

O aumento da dívida pública na Europa ou nos Estados Unidos não resulta de políticas keynesianas expansionistas ou de dispendiosas políticas sociais, mas sim de uma política que favorece as classes privilegiadas: as “despesas fiscais” (baixas de impostos e de cotizações patronais) aumentam o rendimento disponível daqueles que menos precisam, os quais, nessa sequência, podem aumentar ainda mais as suas aplicações financeiras, nomeadamente em Títulos do Tesouro, cuja remuneração de juros é paga pelos impostos cobrados a todos os contribuintes. Em suma, desenvolve-se um mecanismo de redistribuição em sentido inverso, das classes mais baixas para as classes de maiores rendimentos, através da dívida pública, cuja contrapartida vai sempre parar aos detentores de rendimentos privados.

Para endireitar de forma justa as finanças públicas na Europa e em França, colocamos em debate duas medidas:

Medida n.º 12: Voltar a dar um carácter fortemente redistributivo à fiscalidade directa sobre o rendimento (supressão de nichos privilegiados, criação de novas segmentações e aumento das taxas de imposto sobre os rendimentos...)

Medida n.º 13: Eliminar as isenções fiscais concedidas às empresas que não tenham efeitos suficientes em termos de emprego.

FALSA EVIDÊNCIA N.º 7: É PRECISO TRANQUILIZAR OS MERCADOS FINANCEIROS PARA SE PODER FINANCIAR A DÍVIDA PÚBLICA


A nível mundial, o aumento da dívida pública deve ser analisado em correlação com o processo de “financeirização” da economia. Ao longo dos últimos trinta anos, graças à liberalização total dos fluxos de capitais, a finança reforçou de forma significativa o controlo sobre a economia. As grandes empresas recorrem cada vez menos aos empréstimos bancários e cada vez mais aos mercados financeiros. As famílias vêem também uma parte crescente das suas economias escoar-se para a finança no âmbito dos sistemas de pensões, por via dos diversos produtos de aplicações financeiras, ou ainda, em certos países, através do financiamento da habitação (empréstimos hipotecários). Os gestores de carteiras de títulos, para diversificarem os riscos, procuram títulos de dívida pública para contrabalançar as dívidas dos particulares. Encontram-nos facilmente no mercado porque os governos empreendem políticas no mesmo sentido, que levam a um aumento dos défices: taxas de juro elevadas, reduções fiscais beneficiando especificamente os altos rendimentos, incitações maciças à poupança das famílias para favorecer os sistemas de pensões assentes em aplicações financeiras de capitalização, etc.

Ao nível da União Europeia, a “financeirização” da dívida pública foi inscrita nos Tratados: a partir de Maastricht, os Bancos Centrais foram proibidos de financiar directamente os respectivos Estados, os quais têm que recorrer aos mercados financeiros. Esta “repressão monetária” acompanha a “liberalização financeira” e tem exactamente o sentido oposto das políticas adoptadas depois da Grande Depressão dos anos 30, que foram de “repressão financeira” (restrições severas à liberdade de acção da finança) e de “libertação monetária” (com o fim do “padrão-ouro”). Trata-se de submeter os Estados que, supostamente, por natureza, são muito gastadores, à disciplina dos mercados financeiros que, supostamente, por natureza, são eficientes e omniscientes.

Como resultado desta opção doutrinária, o Banco Central Europeu não tem, portanto, o direito de subscrever directamente as emissões de títulos de dívida pública dos Estados europeus. Privados da garantia de poderem financiar-se sempre junto dos respectivos Bancos Centrais, os países do Sul foram, assim, vítimas de ataques especulativos. Certamente, passados alguns meses, apesar de sempre se ter recusado a fazê-lo em nome de uma ortodoxia inabalável, o BCE passou a comprar títulos de dívida pública dos Estados, às taxas de juro de mercado, para acalmar as tensões no mercado obrigacionista europeu. Mas nada nos diz que isso será suficiente, caso a crise da dívida se agrave e as taxas de juro de mercado dispararem. Pode ser então difícil manter esta ortodoxia monetária, que não tem base científica sólida.
Para resolver o problema da dívida pública, colocamos em debate duas medidas:

Medida n.º 14: Autorizar o Banco Central Europeu a financiar directamente os Estados (ou a exigir que os bancos comerciais subscrevam a emissão de títulos públicos), com taxas de juro baixas, libertando-se assim da canga com que os mercados financeiros os sufocam.

Medida n.º 15: Se necessário, reestruturar a dívida pública, por exemplo, limitando o peso do serviço da dívida pública a uma determinada percentagem do PIB, introduzindo uma discriminação entre os credores de acordo com o volume de títulos que possuem: os detentores de grandes volumes de títulos da dívida pública (pessoas ou instituições) devem consentir fazer uma distensão substancial do perfil da dívida, e até mesmo a sua anulação total ou parcial. É também necessário renegociar as taxas de juro exorbitantes dos títulos emitidos pelos países em dificuldade desde que a crise começou.

* Docentes da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra





(Continua)

3 comentários:

  1. Ora, meus caros, cá estão 15 medidas , bem medidas, para responder a este sistema que abocanha tudo sem parar.

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  2. Medidas para a Twiligt Zone.

    Ingénuamente pensei ser possivel discutir aqui os problemas concretos do país.

    Só me resta dar uma sugestão - vejam o último debate do "Prós e Contras" está lá tudo.

    Está na NET no portal da RTP.

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  3. Também vi, em parte, mas os problemas e as soluções estão há muito encontradas.Pelo menos para o nosso país.Falta vontade política e poder a mais do estado que impede a concretização das soluções.

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