terça-feira, 30 de novembro de 2010

Porque não estou de acordo com Carlos Loures no seu texto: “Evento da Literatura Brasileira ‘ qual o momento chave?”

Sílvio Castro

Estou em total desacordo com o meu caríssimo amigo Carlos Loures, do qual conheço desde há muito o empenho cultural e a consciência civil de um verdadeiro progressista, a grande erudição, a sensibilidade na criação literária. Mas, mesmo assim, não posso deixar passar despercebida a tomada de posição que ele erege com a sua conhecida sensibilidade e tato, quando elabora os raciocínios básicos da contestação ao meu texto sobre A Carta de Pero Vaz de Caminha como Evento primeiro e substancial na história da literatura brasileira.

Estamos no dia 1º. de maio de 1500 e a “Carta” está por embarcar no dia seguinte para Lisboa, levada por Gaspar de Lemos para o Rei Venturoso, D. Manuel. Mas o Brasil ainda não existe concretamente, e muito menos a sua literatura. Certo. Então, porque considerar e eleger o texto do magnífico Escrivão português como primeiro produto da literatura brasileira? Simplesmente porque a moderna historiografia literária, ao contrário da tradição positivista, não considera a história política como sua referência essencial para a análise da história literária. Mas, ao contrário, reinvendica cientificamente a sua condição de ciência autônoma, e portanto livre de eleger para suas deduções metodológicas as mais inovadoras teses e com ela criar uma nova dialética cultural. Assim agindo, a moderna historiografia literária supera os defeitos das sedimentações medíocres de um saber histórico passado, e se opõe à repetição de lugares-comuns. Dizer que as literaturas nacionais dos países nascidos do fenômeno da colonização, em particular, aqueles das Américas, podem ser consideradas autônomas somente depois de suas respectivas independência política é um pensamento vazio e anacronístico. Quando alguém, mesmo com todas as qualidades que todos reconhecemos em Carlos Loures, afirma um tal aberrante lugar-comum, não nos resta senão pensar que uma escolaridade fortemente tradicionalista fixa para sempre os maiores lugares-comuns. No caso da questão inexistente, por todos os seus defeitos, da origem da literatura brasileira fixada depois do 7 de setembro de 1822, tudo isso se deve à grande difusão de diversos manuais de história da literatura brasileira, tanto em Portugal, quanto mesmo no Brasil. Mas, depois de tudo, o que realmente vale para os fins do melhor conhecimento da história da literatura é o seu direito de, não ignorando absolutamente a dimensão diacrônica do fenômeno histórico, iluminá-lo maiormente com uma eficaz e coerente tese baseada na sincronia. Daí, entre outras, a tese de que a Carta de Pero de Caminha é o Evento inicial da literatura brasileira porque nela se representa pela primeira vez aquela dimensão que depois será uma constante da criação literária brasileira, a força do território. Território enquanto dimensão geográfica, mas igualmente enquanto dimensão antropológica. Bem como porque o mágico texto desde logo traduz-se lexicalmente apoiado nas conotações típicas da realidade nova, suas cores, vibracidade, dinamicidade, humanidade. O escrivão, vindo da aberta cidade do Porto, saindo da foz do Douro para encontrar o mar-oceano, não é mais aquele “eu” inicial, mas um “outro” nascente dele mesmo.

Quando os liberais de 1820, vitoriosos e ativos no Poder, espantam o mundo ao reiterar a valência de uma radical política colonialista de Portugal e, com isso, desprezando, quanto ao Brasil, a grande conquista da diplomacia joanina que chegara ao Reino Unido, esses liberais já então atuam o defeito que vem de longe e ainda hoje muitas vezes vige, a do predomínio do pensamento ligado aos valores de um cego “europeísmo cultural”. Ao contrário de quanto escreve Carlos Loures, a Independência do Brasil então desencadeia não da parte dos nobres parasitas, mas de patriotas brasileiros da dimensão de José Bonifácio e de Frei Caneca. Mas muito antes disso, o sentimento brasileiro já encontrara inovadoras traduções em poetas como Gregório de Matos, Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga.

Carlos Loures naturalmente não tem nada a ver com aqueles liberais de 1820. As possíveis raízes de seu pensamento político eu as vejo num verdadeiro revolucionário como Herculano, prosseguindo por Oliveira Martins. Carlos Loures – e disso eu sempre soube e admirei – é um verdadeiro intelectual, partecipante e sempre responsável quanto ao seu tempo. Assim ele é, reafirmo. Mas, no seu testemunho sobre a origem da literatura brasileira infelizmente afloram muitas das qualidades predominantemente negativas do “europeísmo cultural”. Eu quase não acredito que seja ele mesmo aquele que escreveu: “Na minha opinião, tudo o que se escreveu no Brasil até a independência do território, pertence ao acervo da Literatura Portuguesa”. Não, tenho a certeza, não é ele.Mas, sim, Cândido de Figueireido!

2 comentários:

  1. Esta conversa é de grande nível e, eu, coitado de mim, sem querer meter prego nem estopa, atrevo-me a dizer que a comparação com a Guiné, Moçambique, Cabo Verde e outros, não me parece a mais feliz.E porquê? Porque antes da indepedência dessas colónias portuguesas havia uma literatura com características próprias, bem distintas da Portuguesa, era gerada por nacionais do território, muitos mesmo sem nunca terem saído da terra natal. Antes de "A Carta de Caminha" não havia aquelas realidades que, podiam não ser reconhecidas politicamente, mas eram ,sem sombra de dúvidas, pertencentes a nacionalidades bem distintas.
    Cá fico para ler com toda a atenção esta controversia que promete ser muito rica.

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  2. Evidentemente que discordo do desacordo do meu querido amigo Professor Sílvio Castro. Desacordo de desacordo que não cabe num comentário. Amanhã publicarei aqui uma carta aberta a ele dirigida. Estou a escrevê-la,

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