quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Austeridade: a Europa a andar em sentido contrário

Michel Aglietta, economista e Lionel Jospin, antigo primeiro-ministro de França (1997-2002).


Depois da reunião do G20, perto de Seul, uma coisa é óbvia: as principais potências económicas do mundo não irão reduzir nem regular o sector financeiro que os estados deixaram constituir na economia mundial ao longo destas três últimas décadas.

Em 2008 e 2009, aquando das cimeiras de Washington e de Londres, foram assumidos compromissos solenes e foram elaboradas áreas de trabalho relevantes. Mas isso levou a muito poucas acções concretas. O sistema financeiro foi salvo e a depressão evitada graças aos planos de retoma económica por parte dos governos, que mostravam a ambição de reformar de uma forma concertada todo o mundo económico e financeiro,. E é esta ambição que entretanto se perdeu.

De onde é que vem esta incapacidade, esta impotência ? Porque é que os estados que salvaram o sistema e tem toda legitimidade para impor regras como representantes do povo, se mostram tão hesitantes em impor aos actores financeiros que assumam o seu lugar normal: o de agentes ao serviço da economia?

As razões são variadas. Muitos governos estão próximos dos mercados financeiros ou são afectados por fortes grupos de pressão. Além disso, alguns dos principais parceiros económicos acomodam-se bem com o status quo. Esta é a situação dos Estados Unidos, em que a atractividade de Wall Street e o papel do dólar como moeda de reserva permitem que se esteja a facilitar o endividamento. O mesmo se aplica à China, que com a subvalorização do yuan ajuda a acumular excedentes comerciais e confortáveis volumes de reservas cambiais. Finalmente, o paradigma da eficiência e da auto-regulação dos mercados continua a ser muito importante. Na mesma altura em que falham os dogmas do neoliberalismo, a análise económica dominante continua a tomá-los como a referência. Se se inicia um novo pensamento este ainda não consegue inspirar os governos.

É necessário não desistir da ambição de reformar o sistema económico e financeiro global. Instaurar uma regulação global da esfera monetária e financeira, pôr em causa as taxas de lucro exorbitantes exigidas às empresas pelos accionistas à custa dos trabalhadores é uma necessidade imperiosa. Também será interessante avaliar se, para além da proclamação de intenções, a presidência francesa do G20 vai unir a Europa em uma torno de uma proposta de reforma do sistema monetário internacional para depois e em seguida, iniciar a negociação entre as diversas áreas de integração económica.

No entanto, mesmo se uma reordenação do sistema económico global se iniciasse isto levaria algum tempo. Enquanto isso, cada um contará com as suas próprias forças e deverá preparar-se para estar na melhor situação possível para futuras negociações entre os diversos conjuntos económicos de países. E é aqui que a Europa está a ir por um caminho errado, que está a andar em sentido contrário. O nosso continente está a passar por uma crise persistente. E isso vai piorar se são mantidas as políticas generalizadas de austeridade decididas pelos governos para 2011 e anos seguintes. Não só essas políticas não são apropriados à situação actual, como também é contestável o diagnóstico que lhes está subjacente .

De facto, os planos de retoma precedentes contam bem pouco para os défices actuais. Os planos de recuperação para 2009 na União Europeia foram calibrados ex ante sobre um acréscimo do défice de 1,1% do produto interno bruto (PIB) em média. Ora o aumento do défice foi de 4,6%, ou seja mais de quatro vezes superior. Isto significa que a timidez dos governos europeus na retoma económica não nos pôde proteger de uma recessão severa. É a recessão, e não as políticas de retoma, que alargou os défices para níveis fora do comum.

Mas hoje, a Europa assenta numa contradição, num contra-senso, ao escolher a política de austeridade. Depois do primeiro erro de uma fraca calibragem da retoma económica em 2009, os governos agravam-no agora, quanto todos ao mesmo tempo invertem a posição e passam a utilizar políticas de austeridade. O prolongamento económico e de modo continuado da crise financeira resulta da falta de dinamismo da procura privada. Muitos actores têm que se desendividar, os bancos estão reticentes em emprestar e a estagnação dos rendimentos e o desemprego auto-alimentam-se. Estamos confrontados com uma situação de uma clara insuficiência da procura. Ora, as elites políticas da Europa fecham-se numa estranha retórica. Estas parecem acreditar que o simples anúncio de austeridade actuará, por todo o lado, como uma varinha mágica sobre esta entidade metafórica que são os mercados. Todas os constrangimentos no sector privado iriam assim desaparecer rapidamente. As famílias iriam começar a consumir e as empresas a investir, como se a crise não tivesse existido. Ora, não é isto o que nos diz o exemplo irlandês.

De facto, trabalhos recentes e muito elaborados do Fundo Monetário Internacional (FMI) varrem completamente essas ilusões. Ao estudar cuidadosamente muitas situações de austeridade fiscal, o FMI mostra que, em média, para um esforço de austeridade, de 1% do PIB, há um efeito de contracção do crescimento do PIB de 0,5%, após dois anos. Infelizmente, o FMI também sublinha que não estamos numa situação média. Na Europa, as consequências da austeridade orçamental podem ser piores, por três razões: todos os países praticam esta austeridade e todos o fazem ao mesmo tempo; as taxas de juros, já baixas, não nos levam muito mais longe; o euro corre o risco de se apreciar em vez de se depreciar, devido à política monetária dos Estados Unidos.

No nosso continente, o impacto da austeridade pode ser de 1% ou mesmo de 2%, dependendo das circunstâncias. Assim, em 2012 e 2013, é provável que o crescimento europeu seja muito baixo. Naturalmente, os défices não serão reduzidos, ou sê-lo-ão muito pouco, por falta de entrada de receitas fiscais, a dívida pública aumentará e o desemprego deverá aumentar novamente. As tensões sociais agravar-se-ão e os movimentos nacionalistas e populistas, que já estão a crescer na Europa, podem muito bem sair assim reforçados.

Para as pessoas de bom senso, esse risco não deve ser tomado. As nossas políticas devem ser mudadas para repor a trajectória do crescimento. Daí poderá mesmo depender a sobrevivência da zona do euro que terá, sem dúvida, muitas dificuldades para ultrapassar uma nova crise simultânea das finanças públicas nos países mais frágeis.

Estabelecer e dirigir uma política de crescimento é vital para a UE. Quer isto dizer que devemos ficar indiferentes aos excessos dos orçamentos e da dívida? Claro que não. Mas, como qualquer grande crise financeira, os seus efeitos estendem-se por uma década. Os governos devem programar o restabelecimento dos equilíbrios orçamentais no final da década e abandonar a ilusão absurda de um retorno rápido da dívida pública a 60% do PIB, quando todas as organizações internacionais têm projectado uma relação dívida / PIB em torno de 110 % a 120% , em média, no conjunto dos países da OCDE. O restabelecimento das finanças públicas não se pode alcançar pela austeridade, mas sim através de um esforço razoável de controle e por um auto-financiamento resultante do crescimento.

Sem dúvida, os mercados exercem, pela especulação, uma pressão sobre os países europeus mais vulneráveis. Eles induzem as agências de rating, pela degradação das suas notas de avaliação de risco, a encarecer o custo dos empréstimos. Os agentes financeiros reencontram assim, apesar dos seus graves erros das suas graves incapacidades, das suas graves falhas, a sua função de censores dos governo de que eles gostam tanto. E, contudo, é da responsabilidade dos Estados - que os têm resgatado - não aceitarem os seus diktats. A solidariedade do Banco Central Europeu (BCE) e dos governos europeus face à especulação contra os mais frágeis , até mesmo uma indicação - já dada pela Alemanha - de que em circunstâncias extremas, se deve organizar uma reestruturação da dívida, poderia servir como uma advertência útil relativamente aos mercados.

Na situação actual, o crescimento depende, fundamentalmente, das políticas públicas. È necessário simultaneamente compensar o défice da procura privada, melhorar a competitividade de muitos países dos europeus (entre os quais a França), criar incentivos para que se verifique uma nova vaga de investimentos e encontrar maneiras de o financiar. Temos de agir quer pelo lado dos recursos quer das despesas, ou seja, temos de reformular a estrutura dos orçamentos, como o fizeram os escandinavos, depois da severa crise bancária de 1991-1992.

No entanto, a insuficiência da procura actual é o resultado de uma evolução que vem de longe. É a deformação ao longo de várias décadas de distribuição da riqueza que levaram à corrida para o endividamento, a uma cobrança exorbitante sobre a economia, à enorme perda de receitas fiscais e tudo isto em benefício da riqueza privada e à pressão sistemática sobre os salários.

O aumento da remuneração do trabalho é, por todo o lado, a chave de toda a recuperação do crescimento. É verdade que com o nível de desemprego que prevalece na Europa, especialmente na França, não pode haver - excepto, talvez, na Alemanha - um aumento significativo do salário bruto. Mas poder-se-ia transferir , através de uma alteração da estrutura fiscal, poder de compra para as categorias sociais que são demasiado pobres para estarem endividadas e que consomem 100%, ou quase, dos acréscimos de rendimento por esta via recebidos. A tributação do capital seria reformulada, seria feita a eliminação de benefícios fiscais às famílias com rendimentos elevados, seria feita uma revisão dos impostos sobre as herança, ou seja, uma inversão das medidas que não tiveram nenhuma eficácia económica, mas que serviram clientelas especiais, é hoje uma necessidade para começar a inverter as desigualdades sociais e criar um fluxo adicional da procura.

No entanto, agir sobre a procura a curto prazo não é suficiente. Deve-se ainda ter os meios de actuar no terreno da oferta, de aumentar o crescimento potencial. Isso exige investimentos públicos e incentivos ao sector privado. Dois tipos de recursos, um disponível, o outro a criar, são passíveis de levar a cabo políticas ambiciosas por toda a Europa. Estes são a taxa de IVA e a fiscalidade sobre o carbono .

A UE deve acabar com o dumping fiscal, que lhe é mesmo devastador. Manipular a taxa de IVA, para promover este ou aquele sector específico cria distorções nefastas sobre os preços relativos. O ideal seria uma taxa uniforme do IVA, provavelmente de 19,6%. O efeito regressivo deve ser compensado por um aumento da progressividade do imposto sobre o rendimento . O fundamental é a criação de recursos fiscais para lançar uma ambiciosa política de educação ao longo da vida, um corolário necessário de qualquer reforma que prolongue a vida activa.

No entanto, a reforma na tributação mais significativa e prometedora para o crescimento é o imposto sobre o carbono. Um imposto europeu sobre o carbono, a partir de um nível próximo do preço de mercado dos direitos de poluição e crescente regularmente até 2020, criaria um valor social do carbono que iria mudar o sistema de preços relativos. Isso faria evoluir o consumo e abriria espaço de rentabilidade para os investimentos rentáveis que permitiriam à Europa manter a sua liderança nesta área.

O produto de tal imposto poderia ser dividido em três partes. A primeira parte deve subsidiar famílias de baixo nível de rendimento para compensar o aumento dos custos de consumo. A segunda poderia ser usada para diminuir a folha de cotizações sociais de modo a incentivar a escolha de postos de trabalho ricos em empregos. A terceira seria paga ao orçamento da UE para financiar os investimentos nas inovações ambientais. Esta última parte permitiria capitalizar uma intermediação financeira construída sobre um Fundo Verde Europeu destinado ao apoio à inovação sobre o meio ambiente. Seria possível emitir títulos para financiar os investimentos de longo prazo e arriscados - públicos ou privados - e mobilizar os investidores institucionais. O essencial seria criar um efeito de massa suficiente para suscitar na Europa uma dessas grandes vagas de inovações que sempre apoiaram o desenvolvimento económico.

Não é porém certo de que este tipo de análise e de propostas tenham actualmente possibilidades de serem aceites dado o actual estado de crispação ideológica e de paralisia política que caracteriza a Europa. Da mesma forma que é difícil esperar ver a Europa conduzir uma política cooperativa para o crescimento.

Mas é necessário lançar o debate, e isto bem para além dos círculos governamentais. Deve haver uma palavra a dizer nos partidos políticos, associações, sindicatos e líderes empresariais europeus posicionados sobre as alterações climáticas e as questões ambientais, mesmo por aqueles investidores financeiros que acreditam que o investimento socialmente responsável é portador de rentabilidade a longo prazo. O modelo económico dos últimos 30 anos - embora a França tenha feito algumas excepções, com a esquerda no poder - foi caracterizado pelo domínio da prioridade ao valor para o accionista, pela hipertrofia das finanças especulativas, pelas exigências financeiras incompatíveis com a rentabilidade das empresas, pelo tratamento fiscal favorável aos meios sociais privilegiados, pelas desigualdades crescentes na repartição do rendimento. È todo um outro modelo que deve agora emergir, se quisermos tirar profundas e enriquecedoras lições da crise financeira. Este modelo deve basear-se numa partilha mais equitativa dos rendimentos, sobre uma população activa mobilizada por remunerações decentes e a quem se oferece possibilidades de renovar as suas capacidades durante a sua vida, sobre um crescimento assente no respeito pelos equilíbrios naturais

Para unir as forças da sociedade civil em torno do novo pacto social, precisamos de um pensamento político consagrado nos programas a nível nacional e capaz de fazer abanar a governação da Europa e ter influência a nível internacional. Dar à análise económica do novo período uma expressão política capaz de agregar as pessoas poderá ser a tarefa central de uma social-democracia reformada .

(Aglietta, Michel; Jospin, Lionel, Austerité: l’Europe à contresens, Le Monde, 22.11.2010)

2 comentários:

  1. Tudo aponta para a salvação do sistema e para a nacionalização dos prejuízos.Não podemos ficar atónitos e mudos perante uma vergonha destas...

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  2. Este artigo, em minha opinião, é mais claro que os aqui apresentados pelos nossos macro economistas cuja análise vai no mesmo sentido. Tem a vantagem de ter menos palha e apontar algumas medidas realizáveis. Quando chega ao busílis de repor a trajectória de crescimento peca pelos mesmos males..."criar incentivos para que se verifique uma vaga de investimentos e encontrar maneiras de o financiar"... o problema são as maneiras que não há maneira de aparecerem. Tenho dúvidas sobre o banco do carbono, um novo sistema de economia virtual que precisa de muita clarificação.
    No último "prós e contras" da RTP (está na NET) lançaram-se melhores pistas, exequíveis, a levar a cabo pelos portugueses - a nossa parte, que é o que interessa.

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