segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O escandalo do salvamento dos bancos irlandeses

Thomas Piketty*

A Irlanda foi primeiramente um milagre que em seguida se transformou num desastre. E que está prestes a tornar-se, agora, num escândalo. É impensável que a União Europeia empreste hoje cerca de 90 mil milhões de euros para salvar os bancos e as finanças públicas irlandeses sem estar a exigir previamente um aumento da taxa de imposição fiscal sobre as sociedades - actualmente de 12,5%, e que deveria ser de pelo menos 25-30%. Primeiro porque os bancos e as outras sociedades implantadas na Irlanda acabarão sempre por voltar a estar em situação de ter lucros, graças ao plano de salvamento europeu. O mínimo que se possa exigir é que estes lucros seja então postos a contribuir de forma significativa. Em seguida, e sobretudo porque as estratégias de desenvolvimento fundadas sobre o dumping fiscal são destinadas ao malogro e nocivas tanto para os países vizinhos como para aqueles que as praticam. Já é mais que tempo para que a UE tome as coisas sob o seu controlo em troca da estabilidade financeira que esta nova posição comportaria realmente.

Em todos os países europeus, os impostos obrigatórios representam pelo menos 30 a 40% do PIB, e permitem financiar um nível elevado de infra-estruturas, de serviços públicos (escolas, hospitais…) e de protecções sociais (desemprego, reformas…). Se os lucros das sociedades são taxados a apenas 12,5%, então nada disto pode funcionar , a não ser se taxarmos muito fortemente o trabalho, o que não é nem justo nem eficaz, e contribui de resto para criar um desemprego elevado na Europa.

Digamo-lo claramente. Deixar que países que se enriqueceram graças ao comércio intra-europeu absorvam em seguida a base fiscal dos seus vizinhos, isto não tem rigorosamente nada a ver com os princípios da economia de mercado ou com o liberalismo. Isto só tem um nome e chama-se : roubo. E ir emprestar dinheiro às pessoas que nos roubaram , sem nada exigir em troca para que isso não se reproduza, a isto chama-se estupidez.

O pior ainda é que o dumping é igualmente nocivo para os pequenos países que o praticam. Certamente, cada país individualmente é metido num engrenagem: como na corrida aos armamentos, os irlandeses têm interesse a manter uma taxa fraca de imposto sobre as sociedades enquanto os polacos, os estónios etc. mantêm a deles. É exactamente por isto que a União Europeia deve pôr fim a este ridículo jogo de soma nula. Pode-se imaginar um imposto sobre as sociedades totalmente europeu, ou um sistema duplo com uma taxa mínima de 25% em cada país, completado com uma sobretaxa europeia de 10%. Deste modo permitiria à UE retomar à sua conta o acréscimo de dívida pública criado pela crise e permitir às finanças públicas nacionais repartirem por um bom caminho.

Uma tal retoma sob controle é ainda mais urgente tanto quanto o dumping contribuiu muito directamente para a bolha irlandesa e para a crise actual. Em especial, o dumping conduziu a manipulações contabilísticas enormes, totalmente artificiais, que tornaram totalmente ilegíveis os balanços bancários e as contas nacionais da Irlanda. Estas estão hoje gravemente poluídas por enormes fluxos de transferência via manipulação de preços (transfer pricing- visando localizar na Irlanda lucros realizados por sucursais baseadas em outros países europeus) de que ninguém conhece o valor exacto. Esta opacidade contabilística tomou proporções ainda mais elevadas que as manipulações gregas sobre as despesas de armamento e sobre o défice público. Nos dois casos, cabe à Europa pôr as coisas em ordem .

Mas com a condição de não se enganar no meio utilizado, no instrumento aplicado. A iniciativa Merkel-Sarkozy que consiste em dar a entender que certas dívidas públicas soberanas não serão reembolsadas integralmente (haircut) não é claramente uma boa ideia. Primeiro porque se quer fazer com que os bancos e os detentores de activos financeiros paguem pelos seus erros, o que é altamente desejável, então vale muito mais ter “um haircut fiscal” (reembolsam-se as dívidas, mas taxam-se os lucros financeiros através de um imposto europeu sobre as sociedades) que “um haircut selvagem” baseado na aposta em falências de Estados e de bancos, processo incerto de que ninguém domina bem para que se saiba quem pagará finalmente as consequências. Em seguida, e sobretudo, porque esta estratégia dos grandes países leva a tornar a criar todo um conjunto de taxas de juro diferenciadas sobre as 27 dívidas soberanas europeias, que fará apenas relançar ainda mais a especulação. Isto poria em causa a própria lógica da moeda única assim como poria em causa o interesse dos pequenos países a nela participarem. É urgente que os dirigentes franceses e alemães [e todos os dirigentes europeus e todas as Instituições da União Europeia ] tenham finalmente a coragem de ter uma visão europeia ambiciosa para se sair da crise actual.

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Thomas Piketty , director de estudos na EHESS e professor na ’Ecole d’économie de Paris.






( Le scandale du sauvetage des banques irlandaises, Dezembro, 2010.?

1 comentário:

  1. É claramente necessária uma política fiscal europeia, sem isso, os países vão sempre usar a fiscalidade para elevar o nível de atração dos investimentos ou, até mesmo,para transferir lucros que são taxados nos paraísos fiscais. Tem-se falado na "Flat tax" mas não vejo pressa nenhuma nem vontade.

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