Adão Cruz
O Paquete entrou ontem no serviço de urgência, inchado como um tonel, tenso como um balão a que só falta o alfinete para estoirar. Fígado, pulmões, ventre de pandeiro, tudo está encharcado como uma esponja, por um coração entupido.
Sem ar, como se morresse afogado, ou, dentro da linguagem médica, como peixe fora de água. Insuficiência cardíaca grave, insuficiência cardíaca descompensada, anasarca, os vários termos para rotular o sofrimento atroz de um jovem sem culpa, igual a tantos outros que jogam ténis.
Socorrido na primeira fase de compensação, e um tanto aliviado, é internado para estudo. Hoje de manhã veio fazer um ecocardiograma.
O Paquete tem vinte e seis anos e uma cara aciganada, morena de si e roxa da cianose. Começou a trabalhar como moço de trolha aos treze anos, vergado ao peso da tábua e do balde. À força de cachaços lá se erguia quando aninhava com o abafa. Nunca alguém o levara ao médico.
Não tive coragem de colher a sua história antes desta idade, a história da sua infância. A meio do exame diz-me o Paquete, a medo e quase em segredo: sr. doutor estou à rasca para mijar. Deixe-me ir mijar, pelas almas.
No meio de tais máquinas, perante aquela gente de bata branca que ele nunca vira mais gorda, o sofrimento da sua vida levava-o a pensar que pedir para mijar era quase um crime.
O Paquete tem uma gravíssima estenose mitral, com severa insuficiência mitral e tricúspide, e um coração do tamanho de uma melancia. Está numa fase inoperável, a rebentar pelas costuras. Se operado fosse, tudo não passaria de remendo em calças a desfazer-se.
Sem a mínima ideia do que se passa, ele submete-se, humilde, desconfiado, medroso como sempre aconteceu em toda a sua vida. Tem medo que lhe ponham a tábua à cabeça ou o balde na mão. E com aquela falta de ar! Ele que sempre pediu para o deixarem respirar um pouco, antes do peso de outra tábua e de outro balde.
O Paquete nunca fora ao médico e nunca ninguém lhe dera a mão para se erguer. Todos lhe esfacelaram o coração e a vida até rebentar! Pobre Paquete! Pobre barco tão frágil!
Com as lágrimas nos olhos saí do hospital e escrevi esta história de hoje, de há séculos. Escrevo-a em especial para os meninos e jovens que brincam, que jogam, que sonham, e que vão ao médico.
segunda-feira, 6 de dezembro de 2010
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Muito humano e muito bonito, pese a doença do jovem. Com 26 anos com toda a vida para viver.Nunca esta sociedade lhe deu antes qualquer oportunidade.
ResponderEliminarAinda bem que não fui para medicina. Acho que não aguentava.
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