segunda-feira, 14 de junho de 2010

Resposta de Carlos Loures à carta de Carlos Leça da Veiga

Meu caro Leça da Veiga:

Respondo à tua carta de ontem, começando pelo fim, pelo quinto ponto: «Não gostei de ver-me mencionado como alguém que defende uma Independência duns e esquece a dum território que é português e está invadido». E terminas: «Se no meu texto sobre a Galiza não fiz referência a Olivença dever-me-ia ser perguntada a razão e não tirar-se a conclusão duma falta cometida».

Lembro-te que o meu texto não constituía resposta ou contestação ás tuas palavras. Essa contestação, fi-la, oportunamente, em comentário ao teu texto. Aludi a esse texto, em que defendias a independência da Galiza, mas não te acusei de coisa alguma. Falavas da Galiza, não era forçoso falar de Olivença. Usei o teu texto como referência. Disse assim: «Há dias, no Estrolabio, Carlos Leça da Veiga, denunciando que na Europa há colónias, pedia a independência da Galiza. Pois há uma outra pequena colónia - Olivença, terra portuguesa, roubada há mais de 200 anos.». De uma forma geral, as nossas posições quanto a Olivença são coincidentes, pelo que uma grande parte do que dizes é por mim aceite, sem reservas. Quanto à Galiza, penso que devemos deixar aos galegos decidirem sobre a sua independência, se a querem. No que diz respeito aos oliventinos acho que não têm o direito de optar – Nasceram num território roubado; podem escolher a nacionalidade que quiserem, mas o território é português.

Passando a outro ponto, dizes. «é inaceitável falares de Espanha e não de estado espanhol. Uma cedência imprópria dum Democrata!» Ora, quem leia o que escrevo, sabe que essa fórmula «estado espanhol» é a que geralmente utilizo. É verdade que neste texto, usei mais vezes a expressão «Espanha». Não tenho que me justificar – todos utilizamos por vezes a designação: não faz, por exemplo, sentido dizer-se «vou fazer uma viagem ao estado espanhol». Esta tua observação, parece-me um exagero, semelhante ao de alguns crentes, em que as referências à entidade divina têm sempre de ser grafadas com maiúscula – Ele, faça-se a Sua vontade, e por aí fora. Não sou religioso e, portanto, reservo-me o direito de dizer Espanha, Grã-Bretanha, como também dizia Jugoslávia e União Soviética. Porque embora desejasse (e desejo) a sua extinção, esse estados existiam e existem à luz do Direito Internacional. Portanto, mencioná-los é coisa natural. Não me parece que a minha condição de democrata fique em risco. Realidade e utopia devem conviver sem sobressaltos.


Por outro lado a Espanha existe, embora tenha começado por ser uma utopia dos reis Católicos. Parece existir uma carta de D. João II a seus primos Isabel de Castela e Fernando de Aragão em que os censura pela abusiva utilização da palavra Espanha para designar os seus reinos, pois, terá escrito o Príncipe Perfeito, «Portugal também é Espanha». E dizem haver uma frase de Camões: "Hablad de castellanos y portugueses, porque españoles somos todos". Frase que reforça a tua tese, mas que também me dá alguma razão.

Em suma, não te quis atingir, não quis contestar nada do que disseste porque o que tinha a contestar, fi-lo no comentário. O meu texto sobre Olivença visava condenar, sobretudo, a cobardia dos políticos portugueses que em mais de dois séculos se têm esquivado de enfrentar este assunto. Apenas quis dizer – pede-se a independência da Galiza; muito bem. E peça-se também a restituição de Olivença.

E já agora, a tal questão sobre a existência ou inexistência de Espanha. Desmantelar o actual estado espanhol, não significa, quanto a mim, acabar com a união das regiões que têm o castelhano como idioma. Se defendemos a independência de Galiza ou a sua união com Portugal, a libertação dos chamados países catalães (Catalunha, Valência e Baleares), bem como a independência dos bascos, estamos portanto a relacionar a identidade nacional com a língua e com a cultura. Existem regiões, além de Castela, onde se fala o castelhano. Aliás, a Andaluzia (cuja independencia também reclamas), região que conheço bem, faz parte do substrato mais profundo daquilo a que se convencionou chamar Espanha – Sevilha, mais do que Madrid ou Toledo, está no cerne da «espanholidade». E não me refiro só às touradas e ao flamenco - Federico García Lorca, Picasso, Góngora, Antonio Machado, Juan Ramón Jiménez, Manuel de Falla (citei de memória, pois a lista de intelectuais andaluzes, se completa, seria maior que toda esta carta), constituem um lastro cultural impressionante. Para não falar em bascos, como Unamuno, em galegos, como Torrente Ballester ou Camilo José Cela, catalães com Manuel Vázquez Montalbán ou valencianos como Vicente Blasco Ibañez, que, sem renegar as suas origens, se consideravam espanhóis.

Espanha é uma realidade. Dentro das suas fronteiras, se há milhões de pessoas que não se consideram espanhóis, há uma maioria que como tal se considera. Hoje já não faria sentido chamar Castela a uma nação que extravasa em muito os limites das regiões castelhanas. Talvez as nossas utopias quanto ao reordenamento da Península não sejam coincidentes. Para mim, para além de Portugal, da Galiza, dos Países Catalães e do País Basco, haveria uma quinta república – a espanhola. Porque podemos recusar o conceito de Espanha, opressora de nacionalidades; mas não temos o direito de impedir quem se sente espanhol de o sentir e de reivindicar a nacionalidade. E a Andaluzia faz parte dessa Espanha. Bem sei que há movimentos autonomistas (sem expressão significativa). Quanto a mim, defender a independência da Andaluzia enfraquece a defesa das legítimas lutas pelas independências da Galiza, Catalunha e País Basco. Mas isto é só um pormenor. Por mim, a independência da Andaluzia ou a da Extremadura, não merecem discussão. É como pedir a independência do Algarve ou a da Galécia portuguesa., a norte do Douro. E pedir independências que não fazem sentido, aos olhos da opinião pública, retira o sentido às que são legítimas.

Em suma, meu caro Carlos Leça da Veiga, querido companheiro de tantas lutas, de modo algum quis acusar-te de qualquer falta, pelo que não tinha que perguntar-te fosse o que fosse. Posso não concordar sempre contigo, mas compreendo bem o que dizes, de tal maneira é clara a forma como escreves. O que acontece desde sempre é que as nossas respectivas utopias não são inteiramente coincidentes. O que não é crime, nem meu nem teu. E já não estamos em idade de as mudar. Pode ser que a razão se encontre algures a meio desses territórios. E, sem louvaminhas despropositadas, queria felicitar-te pela tua pertinácia na defesa daquilo em que acreditas, nas tuas utopias e lembrar-te uma frase de Boaventura Sousa Santos que justifica, se precisássemos de justificações, a crença que mantemos na utopia: «Mas, como disse Sartre, antes de ser concretizada, uma ideia tem uma estranha semelhança com a utopia. Seja como for, o importante é não reduzir o realismo ao que existe, pois, de outro modo, podemos ficar obrigados a justificar o que existe, por mais injusto ou opressivo que seja». Como injusta e opressiva é a ocupação que o estado espanhol faz na Galiza, no País Basco e na Catalunha, e do roubo a Portugal do pequeno território de Olivença, acrescento eu.

Recebe um forte abraço.

Carlos Loures

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