Carlos Loures
Meses atrás, no calor da luta políitica, alguém comparou José Sócrates a Hugo Chávez, advertindo para os perigos da instauração de um regime autoritário sob a égide do actual primeiro-ministro. A intenção era ofender Sócrates. A mim pareceu-me um elogio. Mas, humor ou mau-humor aparte, será que corremos o risco de ter aqui um regime populista, caudilhista? Com Sócrates ou com outro qualquer?
Com todas as suas demagogias e autoritarismos, Chávez, comparado com os políticos portugueses do chamado «bloco central» é um ser humano mais autêntico, mais digno de ser odiado ou amado. Eles, videirinhos, carreiristas, oportunistas, apenas merecem ser desprezados. São políticos descartáveis.
Quanto ao chavismo e a Chávez, com os seus excessos e gaffes, sempre tão explorados pelos órgãos de comunicação, devemos lembrar que ele é presidente de um país sul-americano, onde um regime autoritário não significa o mesmo que significaria na Europa. – o desnível social entre pobres e ricos é de tal forma escandaloso que só uma mão de ferro pode tentar manter a justiça. A democracia representativa é um regime em que os «direitos» e as «liberdades» sufocam por vezes a Liberdade e submergem o Direito. Sobretudo, uma democracia desenhada para a Europa, em circunstâncias históricas, sociais e culturais muito específicas (e mesmo assim funciona aqui no continente da forma que sabemos). Não é um modelo aplicável em todas as latitudes e em todas as situações.
A democracia é um sistema justo, igualitário e que promove a inteira liberdade de expressão. É um ideal límpido pelo qual muitos cidadãos morreram. Mas não é uma verdade incontestável nem um sistema que possa ser aplicado em todas as circunstâncias. Numa sociedade de estrutura tribal, por exemplo, a democracia não faz sequer sentido. E teremos nós, democratas europeus ou americanos, o direito de erradicar, por exemplo, o tribalismo para impor a democracia? Penso que este desejo de impor o que achamos bom para nós aos outros, tem sido, desde há muitos séculos, o erro recorrente de europeus e de norte-americanos. Uma arrogância, de britânicos no século XIX e XX, de norte-americanos em seguida, e de europeus em geral, que passando por cima dos conhecimentos antropológicos, atinge as raias da imbecilidade.
Veja-se o caso do Iraque. Uma aliança internacional foi lá impor a democracia e derrubar um tirano – resultado: num país onde um déspota, a par da tirania, impunha ordem e alguma paz social, existe desde a «libertação» uma guerra em que morreram e continuam a morrer milhares de pessoas, um país em ruínas, um caos social e político. Não competiria aos iraquianos derrubar o tirano e implantar a democracia, se fosse essa a sua vontade? A chamada «Europa civilizada», sempre defendeu que o que castelhanos e portugueses fizeram durante os Descobrimentos e a Colonização foi errado e mesmo criminoso – impor a fé cristã pela espada (e foi!). O mesmo não se poderá dizer daquilo que europeus e norte-americanos estão a fazer pelo mundo fora, impondo a democracia como modelo único da governação dos povos?
Não estou a defender Chávez (o qual, de certo modo admiro, diga-se) estou apenas a tentar compreender o fenómeno dos regimes autoritários da América Latina. Como se explica que nas principais cidades de uma Venezuela cheia de recursos naturais, existam chabolas miseráveis a pouca distância de condomínios luxuosos? Explica-se pela exploração desenfreada, pela incontrolada acumulação de riqueza por parte de pequenos sectores da população. Explica-se porque há uma fera à solta chamada capitalismo. Quem reclama por mais liberdade? Os habitantes das chabolas? Não. Intelectuais e terra-tenentes, a gente dos bairros ricos, os fazendeiros. Os mesmos que em épocas recentes apoiaram caudilhismos de sinal oposto e que agora se converteram à democracia. Nestas condições, o que será preferível, o chavismo, com as suas prepotências, ou a «democracia» colombiana, com ligações do presidente Uribe aos cartéis de narcotráfico ou a «democracia» argentina e a fortuna que o casal presidencial Kirchner acumulou?
Um ex-ministro de Salazar disse-me uma vez uma coisa muito certa – por vezes os povos têm de escolher entre o pão e a liberdade. Ele estava a defender a política de Salazar, mas o princípio vale para outras situações. Aos que na Venezuela nada têm, para que lhes serve a liberdade de expressão? Que lhes importa que Chávez impeça as televisões de transmitir este ou aquele programa ou mesmo que feche uma estação de televisão? Para quem tem fome, o que é uma série de desenhos animados, como os Simpson, por mais de culto que seja para quem come todos os dias, comparada com um bom pão de quilo, com meia dúzia de ovos ou com um pacote de leite? Na verdade, os povos da América Latina são postos frequentemente entre o dilema de escolher entre o pão e a liberdade. Quando lhes aparece um caudilho ou um demagogo, recebem-no em delírio. Foi assim com o justicialismo de Perón e com o marxismo de Fidel. É assim com a demagogia populista de Chávez.
Em todo o caso, com todos os seus problemas, Portugal não se situa na América Latina; a classe média, no sentido lato, é maioritária – o que tem dado a vitória ao «bloco central» - o chavismo aqui estaria condenado ao fracasso, pois 20% da população a viver abaixo do limiar da pobreza não constitui uma base social de apoio suficiente para implementar um regime caudilhista. E os 80% que, uns melhor outros pior, comem todos os dias, estão-se marimbando para o facto de dois milhões de pessoas sobreviverem sabe-se lá como – e vão votando ao sabor de interesses corporativos, da crença em promessas, da simpatia que este ou aquele candidato emanam. E vão vendo o futebol, bebendo umas bejecas, mandando umas bocas, votando em gente que, de uma maneira geral, não presta… Enfim, a democracia a funcionar em pleno e em todo o seu esplendor. Ouçamos Hugo Chávez discursando nas Nações Unidas. "Necessitamos de asas para voar", diz ele. Sem dúvida.
Para voar acima do ninho de cucos em que a comunidade internacional se transformou.
domingo, 8 de agosto de 2010
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Com o desenvolvimento do Mercosul espécie de UE na América do Sul, aquela parte do mundo vai estabilizar.Será o próximo trabralho de Lula depois de sair da Presidência?
ResponderEliminarCaro amigo Carlos, por quem nutro grande consideração.
ResponderEliminarAgredeço-te este artigo, importantíssimo como tampão, no meio do requintado neo-fascismo dos nossos tempos.
Agradeço-te este artigo, porque me abre ainda mais os olhos no reconhecimento dos inimigos da justiça e da humanidade.
Sei que és um interlocutor muito sábio, muito sério e muito honesto.
Mas não alinho totalmente com algumas das reservas que colocas em relação a Hugo Chavez.
Longe de mim considerar que o ser humano pode ser impoluto,inatacável, perfeito. Mas Hugo Chavez é para mim um fenómeno inacreditável,quase a concretização de uma utopia política que sempre sobrevoou a minha mente. Custa-me a acreditar, que,nos tempos que correm, verdadeiros tempos de putrefacção da humanidade, ainda tenha sido possível colher do meio da lixeira um fruto intacto. Uma maçã sem manchas de podridão, ainda que suja da lixeira, mas que a água da sabedoria, da entrega total, da renúncia ao vil aproveitamento material do poder, haverá de se mostrar limpa e límpida, se as mãos rapinas do imperialismo a não conseguirem arrepanhar. Este o meu grande temor, o meu grande medo do que no horizonte já se desenha. Se eu, os meus filhos e a minha família fizéssemos parte da sociedade venezuelana, nunca seria Chavez a causa dos meus medos, mas sim os EU.
De resto, nos meios dos defensores do eleitoralismo, poucos actos democráticos se terão mostrado tão evidentes. No terreno, na prática, e isto confirmado pelo FMI, nunca a sociedade explorada da Venezuela obteve tantos benefícios, em termos económicos, sociais,de educação e de saúde.
Meu caro Adão, a consideração é mútua. Já tivemos ocasião de verificar, ao longo de cerca um ano de convívio, primeiro no Aventar e agora no Estrolabio, que as nossas divergências são mais de forma do que de conteúdo. E creio que neste caso vertente disso se trata também.
ResponderEliminarNa juventude sofri uma grande desilusão com Fidel, quando ele para se defender de um imperialismo se lançou nos braços doutro não menos sinistro imperialismo. Os jovens são românticos e o exemplo do "Che" imolando-se no fogo revolucionário, constituiu para mim um imorredoiro ícone de coerência. Fidel tinha um povo para governar e foi pragmático.
Hugo Chávez é diferente de ambos e só evoquei Fidel e Guevara para referir dois tipos de discurso populista. O de Fidel revelou-se de uma oratória inconsequente, o do "Che" coincidente na teoria e na práxis. As reservas que lhe ponho são de uma certa falta de contenção verbal qque facilita a vida aos seus detractores políticos e aos miseráveis praticantes de uma "informação" que vive em descarada mancebia com esses detractores. Apreciei a serenidade de Allende (que de pouco lhe valeu, reconheça-se). Chávez, que considero um homem inteligente e valente, parece muitas vezes ir atrás das palavras. Allende (e Fidel, de outra forma) faziam com que as palavras fossem atrás das suas ideias e as transmitissem com rigor.
Porém, quanto ao essencial, aprecio Chávez, admiro a sua frontalidade e coragem, e lamento se das minhas palavras do post de hoje se pode deduzir o contrário.
Um abraço, Adão.
Não sei Luís... o mais provável é que os EUA e companhia façam tudo por tudo para que Lula da Silva se torne secretário-geral da ONU. Aí será mais facilmente controlado, limitado o seu trabalho e... afastam-no do Mercosul, de Chavez, ... do desenvolvimento da América do Sul
ResponderEliminarNa América do Sul por onde andei há dois anos, lamentava-se essa verborreia de Chavez, temendo-se o gigante a norte.No essencial estavam de acordo com Chavez. depois de Lula as coisas são muito diferentes, com umm Brasil democrático e a caminho de se tornar uma potência mundial.
ResponderEliminarLá vamos nós Luís!
ResponderEliminarUm«Brasil democrático», dizes, podendo isso significar que a Venezuela o não é. Devo dizer-te que não acredito em Lula. É um homem com aquele «bom senso» que os norte-americanos tanto apreciam. Com ele, haverá estabilidade, seja lá o que isso signifique no Brasil. Com ele, avançar-se-á para pequenas reformas que deixarão tudo praticamente na mesma. Ele quer conciliar o inconciliável. O Brasil necessita de uma transformação profunda, não de «medidas sensatas». E quem na América Latina lamenta a «verborreia do Chávez»? Os «democratas» que louvam a «sensatez» de LUla da Silva - há quem lhes chame «gusanos».
O Brasil uma potência mundial? É provável. A China e a Índia já o são. A grande maioria de chineses e indianos o que ganham com isso?
ResponderEliminarNos últimos 20 anos saíram 40 milhões de braseiros da miséria. É extraordinário, embora uma parte dos brasileiros diga que Lula colhe os frutos de trabalho feito antes dele.Quando digo democrático quero dizer que se pode reformar em democracia, não estou a comparar com a Venezuela, que antes de Chaves era uma sociedade com rupturas sociais importantes, a tal ponto que quem estava ligado á industria do petŕoleo vivia em bairros exclusivos e ía para o trabalho de helio(este teu amigo esteve lá duas vezes por razões profissionais).Há uma ilha a norte da venezuela, que agora me escapa o nome, pertíssimo de terra que mantem a bandeira da Holanda, para que desta forma fuja às autoridades Venezuelanas. Lava-se a massa em meia hora...por isso bem compreendo Chavez!
ResponderEliminarOs BRIC (Brasil,Rússia,India,China) vão ser os poderes dominantes, no futuro. Já não veremos, mas a sociedade (mesmo que capitalista) vai ser muito diferente da que conhecemos. Como diz Boaventura Santos, instituições internacionais vão escapar ao poder dos estados -nação e regular de acordo com a globalização, o Estado-nação vai passar a ter a função de manter o Estado de Direito, para que as leis mantenham o povo sossegado. A esperança está na classe média, essa invenção da social democracia, com gente que tem muito a perder, com acesso à informação e que poderá ter um papel de charneira e tirar muitos milhões da miséria.
ResponderEliminarNão é o Mercosul mas o controlo das fontes energéticas do planeta que preocupa os EUA. Venezuela, 5º maior produtor de petróleo, com o "pesado" tem talvez as maiores reservas, Bolívia fornece mais de metade do gás do Brasil e onde a extracção do petróleo é a mais barata. Chavez é um perigo pelo exemplo, a nacionalização das fontes energéticas, mesmo em parte, é a questão. Evo Morales (outro ditador?) pôs os militares brasileiros a pedir intervenção na Bolívia por causa da Petrobrás, depois há a aliança militar Bolivariana de Evo com Chavez e a concessão de exploração de petróleo aos russos, chineses e iranianos. É a geoestratégia e não os regimes políticos que estão em causa. Chavez tem feito jogadas de mestre e este novo poder na América Latina incomoda, daí a campanha dos papagaios do "ocidente democrático". Os dirigentes que amolam os EU só querem maior parte dos rendimentos dos seus recursos naturais, e é para melhor os distribuir pela população que vive mal em solo rico. São diferentes dos líderes africanos, gosto. Morales dizia que precisa de sócios e não de patrões. Como bem diz o Carlos têm uma base de apoio, quando tiverem uma classe média dominante, terão uma democracia como a nossa com todos os partidos da classe média, tipo pc bloco ps psd e cds a representá-la, e serão felizes como somos aqui.
ResponderEliminarO Merconsul vai dar uma capacidade de resposta muito maior do que a presente.Massa crítica para impor políticas e defender o que é seu.A classe média é uma enorme conquista dos povos.É o estabilizador, a suspensão, os travões...
ResponderEliminarO Mercosul, por enquanto, é uma miragem. Uma má imitação da UE, a qual, por seu turno, está longe da perfeição...
ResponderEliminarSim, mas há quem diga lá, que vai ser a função do Lula e com um mercado tão grande e tão rico em matérias primas, os US já não dividem para reinar.
ResponderEliminarSe é uma ideia tão boa, por que é que, criado em 1991 pelo Trtado de Assunção, em quase 20 anos de existência continua a ser uma promessa para o futuro?
ResponderEliminarFidel, Che, Lula da Silva, Hugo Chavez, Evo Morales... e outros que se seguirão são motivo para as nossas reflexões, fossemos nós capazes de deles aproveitar apenas as virtudes!
ResponderEliminarEm Santa Clara, lembras-te, Carlos?, quando acabei de ler a carta de despedida de Che, cravada, com letras de ferro, na frente do mausoléu de Che, as lágrimas correram-me pela cara, mas essas lágrimas eram mais pela utopia não concretizada do que pela partida do Che.
Do Che, devemos lembrar, apesar de tudo, a sua coerência teoria/prática (práxis, lhe chamas tu), o que exigia dos outros, não deixava de exigir de si próprio, mas tenho sérias dúvidas que o povo cubano hoje estivesse melhor se tivesse Che a ocupar o lugar que Fidel ocupou (e que, na realidade, continua a ocupar).
Por que não dedicarmos as nossas reflexões ao que poderia ser a CPLP? Quisessem os países que a constituem e poderíamos dar cartas no Mundo, ter um papel que não poderia ser ignorado pelos restantes países, EUA, UE, Mercosul, China, Índia! Comecem por pensar na posição geográfica dos países da CPLP... e por aqui me fico com mais esta provocação!
São provocações positivas, as tuas, António. com as quais em geral estou de acordo. E por isso não tenho respondido. Claro que me lembro de Santa Clara e da leitura que fizemos da carta do "Che" para Fidel, renunciando a todos os seus cargos e apenas pedindo que o Estado Cubano olhe pelos seus filhos. Comovente, na verdade, quando pensamos na generalidade dos políticos «democratas» que saltam dos cargos oficiais para as administrações das grandes empresas. A CPLP, com governos como este, do "teu" PS (também posso provocar), nunca será nada. E a culpa não será só dos sócrates - há, por exemplo, josés eduardos com fortunas imensas... Até é censurável que no mesmo texto misturemos o nome de Guevara com o destes vermes. Um abraço, provoca sempre.
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