quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O Romantismo social português:6 - Antero de Quental

Sílvio Castro

A exaltação da utopia enquanto fator de existência informa praticamente toda a vida de Antero de Quental. Com uma conclusão aparentemente contraditória, o suicídio, a procurada solitária morte no banco do jardim público de Ponte Delgada, em 11 de Setembro de 1891. O mesmo suicídio que aterrorizou o religioso João de Deus, mas que não o impediu de dedicar ao mais jovem amigo o belíssimo epitáfio, “No túmulo de Antero”:

“Aqui jaz pó: eu não; eu sou quem fui,
- Raio animado dessa Luz celeste,
À qual a morte as almas restitue,
Restituindo à terra o pó que as veste.”

João de Deus constituiu para Antero uma referência primordial. Ainda que aparentemente entre os dois poetas as distinções sejam claramente visíveis, assim aconteceu. O mesmo Antero capaz da mais profunda participação com o lirismo condicionado preferencialmente pela reflexão filosófica, o mesmo Antero que diante da complexidade dos fenômentos sociais procurava através da experiência direta e prática as possíveis soluções para os mesmos, percorrendo o mundo a procura de novas possibilidades do agir coerente, esse mesmo Antero é aquele que admira irrestritamente o poeta de Flores de Campo e que dele partira seja para a conquista lírica, seja para uma visão específica da mensagem do liberalismo.

O Antero que elege João de Deus como fator de modernidade é o jovem estudante, mas já poeta consagrado, que desecadeia a rebelião contra a anti-modernidade predominante em Portugal, rebelião sintetisada na chamada Questão coimbrã, de 1865. Já então Antero de Quental se apresenta como exemplo de uma síntese rara de união entre poesia e política. Já desde então faz-se ver como verdadeiro lider social, condicionando toda uma geração de grandes intelectuais.

Os arrebates dos tons usados contra a hegemonia cultural de António Feliciano de Castilho está o mesmo Antero que mais adiante saberá conduzir mentes como as de Ramalho Ortigão, Oliveira Martins, Jaime Batalha Reis, Eça de Queirós e outras na participação civil com a difícil realidade portuguesa da segunda metade do século XIX.

A partir de então Antero de Quental como que se desdobra em dois: aquele que se debruça inteiro na complexidade da condição humana e aquele outro que procura soluções políticas de equilíbrio sob o difícil regime monárquico que apesar de tudo continua a guiar o país. Essa luta de equilíbrios aparentemente contraditórios fará com que os fundadores da ação organizada do socialismo em Portugal cheguem até mesmo a participar da política oficial do governo monárquico. Antero então se prodigaliza em manter a serenidade ativa dos seus companheiros, entre os quais surgiam as mais profundas discussões. A capacidade de levar a visão utópica de suas convicções às maiores consequências faz com que Antero possa mediar entre a praticidade comportamental civil de um Oliveira Martins e a irreverente, incontida ação de um Teófilo Braga, inimigo crônico do poder da monarquia e acertor infatigável dos ideais republicanos.

Antero de Quental então é a voz capaz do maior, quase inconcebível equilíbrio. O mesmo poeta que traduz os mais altos problemas da existencialidade individual sabe atingir o polo oposto da absoluta participação, quando a traduz liricamente em poemas como o “A um poeta”:

Surge et ambula!

Tu que dormes, espírito sereno,
Posto à sombra dos cedros seculares,
Como um levitã à sombra dos altares
Longe da luta e do fragor terreno,

Acorda! é tempo! O sol, já alto e pleno,
Afugentou as larvas tumulares...
Para surgir do seio desses mares,
Um mundo novo espera só um aceno...

Escuta! é a grande voz das multidões!
São seus irmãos, que se erguem! são canções...
Mas de guerra... e são vozes de rebate!

Ergue-te pois, soldado do Futuro,
E dos raios de luz do sonho puro,
Sonhador, faze espada de combate!

Tudo isso como que tem um fim na tragicidade daquele 11 de Setembro de 1891. Um dia fatal para toda uma geração que praticamente encontra seu ponto conclusivo no episódio solitário banco de um jardim público de Ponta Delgada.






























































































































































































































O Romantismo social português: 7- Teófilo Braga





















Sílvio Castro

































A história civil e cultural de Teófilo Braga está sempre muito ligada àquela de Antero de Quental. Ambos filhos da mesma Ponta Delgada, se distinguem inicialmente pelas correspondentes origens familiares. Enquanto Antero nasce e cresce num ambiente de elevadas condições materiais e sociais, Teófilo é filho de pais pobres, e na pobreza cresce, o que o leva a sacrifícios desde a mais jovem idade. Porém, mesmo dentro das maiores dificuldades, assistido sempre pelos genitores que com sacrifícios conseguem fazer com que o filho encete a carreira dos estudos superiores.Assim, pode o moço Teófilo deixar o seu natio Açores para o curso de Direito na Universidade de Coimbra. Ali encontra, já gozando a fama de grande poeta, Antero de Quental, mais velho do que ele de apenas um ano, sendo Teófilo Braga de 1843.









À natural liderança anteriana, já forte em todo o ambiente acadêmico conimbrense,









adere o sempre decidido e firme espirito do futuro lider socialista e republicano. Essa adesão correspondia a uma grande admiração pelo poeta e pelo pensador, como desde então se apresentava o autor das Odes Modernas.









As lutas próprias da Questão coimbrã servirão para unir definitivamente os dois









açorianos. Porém, enquanto depois de concluídos os respectivos cursos acadêmicos Antero de Quental se dedica às mais internacionais experiências da Era nova que se avizinhava, Teófilo Braga tendia a batalhar inicialmente para colmar de modo especial os espaços materiais negativos de sua vida de moço pobre. Começa então um longo percurso de estudioso insone, guiado pelo desejo da conquista de todos os títulos que o elevassem sempre e mais nos planos social e financeiro. Dessa grande atividade nasce uma numerosa bibliografia de estudos, a começar pela tese Teoria da História da Literatura Portuguesa, publicada em 1881, com a qual, em 1872, conquista por concurso a cadeira de Literaturas Modernas do Curso Superior de Letras da Universidade de Coimbra; bibliografia continuada em títulos como a monumental História da Literatura Portuguesa, em 11 volumes (Porto, 1896-1907). Além desse ângulo de produção erudita, Teófilo Braga pratica igualmente a poesia, começada com a juvenil coletânea de Folhas Verdes, de 1860, e culminada com A Visão dos Tempos. Epopeia da Humanidade (1894-95).









Porém, ainda que preso por esses intentos, não deixa de ser em momento algum o









batalhador incansável pelas idéias novas. Então a sempre grande admiração sentida pela guia ideológica anteriana passa por significativas mudanças: de um certo modo menos diretas ao início, mas logo em seguida vivida não mais sempre no grupo geracional, mas em ativo isolamento. Ao espírito conciliador muitas vezes demonstrado por Antero de Quental na vida política, em particular a afirmação de uma linha predominantemente liberal capaz de colaborar com o regime, até mesmo em nível de governo, encontra clara oposição da parte de Teófilo. Entretanto, seguindo sempre e coerentemente um percurso em favor dos ideais republicanos, subordinados às lições socialistas, ele conduzirá as suas atividades dentro das ações próprias da Geração de 70. A trágica morte de seu mestre de sempre deixará Teófilo Braga ferido profundamente, como o demonstra o seu admirável ensaio escrito para o livro In Memorian de Antero.









Teófilo Braga se mostra desde sempre um socialista convicto e inabalável. Suas convicções nascem de profundos estudos de autores socialistas, em particular em confronto com a obra de Proudhon. Esses estudos levam o grande pensador e ensaísta que sempre foi Teófilo Braga a um dos seus mais significativos livros, O Socialismo, estudos de rara importância para a história das idéias políticas portuguesas, e que teve a sua edição prefaciada pelo polígrafo baiano Almáquio Diniz, primeiro tradutor do Manifesto Futurista marinettiano, tradução publicada na Bahia no mesmo ano da saída do manifesto fundador do Futurismo, 1909.









Dois são os episódios que marcam a acentuação da linha radicalizada de Teófilo Braga na direção eletiva absoluta pela República. No plano mais diretamente pessoal, a morte trágica de Antero de Quental, em 1891. Assim como esse episódio pode ser tomado como o momento conclusivo da ação dos componentes da Geração de 70, o mesmo serve para a definitiva afirmação da ação política de Teófilo Braga. No plano ideológico o movente direto é o episódio do Ultimato. Teófilo Braga se associa à luta contra o fraco regime monárquico abandonando qualquer e impossível adesão à liberdade do Liberalismo, para pugnar intensamente pela democrática e ampla liberdade socialista. Socialismo e República se fundem numa única convicção nas ações do patriota Teófilo Braga.









Hoje, quando todo o Portugal comemora e festeja o centenário da República, mais do que nunca é indispensável realçar a figura do inaugural Presidente Provisório republicano que em 1910, nos plenos ares burrascosos dos novos tempos, soube dedicar-se inteiramente ao bem de seu País. Capacidade por ele diretamente renovada quando a 29 de maio de 1915, pelo Dec.-D.G. n° 100, em substituição do Presidente Manuel de Arriaga que resignara do cargo, vem proclamado Presidente da República, com mandato até 5 de outubro do mesmo 1915, quando passa a direção do Estado ao novo Presidente, Bernardino Machado.

















































































O Romantismo social português: 8 – Guerra Junqueiro





















Sílvio Castro

































Possivelmente Guerra Junqueira será o mais popular poeta do romantismo comparticipante do social em Portugal, não somente preso pelo seu público nacional, mas igualmente entre os brasileiros de seu tempo. No Brasil como que se ombreia com Castro Alves, o mais amado dos poetas românticos brasileiros; ambos, Junqueiro e Castro Alves guiados pela exuberante linguagem lírica de origem huguiana.









Guerra Junqueiro vive de certo modo à parte, mas intensamente, as experiências da Geração de 70. Nele poesia e consciência política se abraçam em forma absolutamente pessoal.









O lirismo do autor de Oração à Luz resulta de uma formação fortemente religiosa, cedo transformada em experiência pessoal intensa. A religiosidade juqueiriana se aproxima então da participação com a natureza, dela se reapropiando e fazendo de tudo uma própria metafísica.









As dimensões de uma religiosidade panteista original e a logo adquirida consciência política da realidade social, em que vive, fazem de Guerra Junqueiro um poeta especial. Surgem assim vozes aparentemente contraditórias, mas eficazes: cantos feitos de subjetividade profundamente religiosa e uma viva batalha contra o poder temporal da Igreja e as deformações produzidas pelo mesmo no ambiente social, sob uma semântica poética resultada da linguagem corrente e de forte espírito satírico, como no poema “O Baptismo”:





















Batipzais: arrancais dum anjo um satanás.









Desinfectais Ariel banhando-o em aguarrás









De igreja e no latim que um malandro expectora.









Dizeis à noite – limpa a túnica da aurora,









E ao rouxinol dizeis: pede a bênção da c’ruja.









Dais os lírios em flor ao rol da roupa suja.









Representais a farsa estúpida e sombria









Dum cônego a lavar um astro numa pia,









Finalmente extrais da inocência o pecado,









Que é o mesmo que extrair duma rosa um cevado,









E tudo isto porquê?









- Porque na bíblia um mono









Devora uma maçã sem licença do dono!





















A irreverência tenaz contra o poder temporal da igreja é apenas uma face do amplo lirismo junqueiriano. Igualmente forte e expressivo é o tom de sua luta contra a monarquia e o poder monárquico que condena Portugal ao mais absurdo subdesenvolvimento. O espírito civil do poeta se manifesta então numa linguagem poética de exaltação sentimental de sua Nação subjugada pela política retógrada. Nesse nacionalismo sentimental, em Junqueiro ocupa posição essencial a adesão aos destinos dos pobres, dos deserdados, dos simples. Como em poemas da dimensão de “o Cavador” –





















“Dezembro, noite canta o galo…









Rouco na treva canta o galo...









- Oh, dor! oh, dor! –









Aldeão não durmas!... Vai chamá-lo,









Miséria negra, vai chamá-lo!...









Oh, dor! oh, dor!”





















Ou nos comoventes versos de “Os pobrezinhos” –





















“Pobres de pobres são pobrezinhos,









Almas sem lares, aves sem ninhos...





















Passam em bandos, em alcateias,









Pelas herdades, pelas aldeias.









...........................................................”





















Forte espírito liberal, Guerra Junqueiro se divide igualmente com a prática política, representando o Partido Progressista no parlarmento e lutando nas praças civis contra a opressão do poder monárquico aos fracos e oprimidos. Esta luta encontra o maior espaço depois do episódio do Ultimato. O nacionalista orgulhoso que sempre viveu em Guerra Junqueiro não poderia aceitar tamanhas ofensas à sua pátria –





















“Cospe o estrangeiro afrontas assassinas









Sobre o rosto da Pátria a agonizar...









Rugem nos corações fúrias leoninas,









Erguem-se as mãos crispadas para o ar!...”









































































































































































































































































































































































































O Romantismo social português: 9 – Cesário Verde





















Sílvio Castro

































Cesário Verde, nascido em 1855 e morto em 1886, representa um singular fenômeno no quadro geral do romantismo português. Com ele a poesia de Portugal ganha improvisamente uma modernidade desconhecida. Seus poemas, mesmo participando de uma longa tradição, rompe com os tempos e se projeta muito além de uma época pessoal, ainda que sendo principalmente fruto dela.









Filho de uma rica família de comerciantes, desde muito cedo ligou a própria existência à atividade do pai, para nela criar e desenvolver uma personalidade quase anônima, mas que cedo se projeta como uma revolução. Nasce assim um intelectual e um criador lírico que, aparentemente integrado a um ambiente burguês insuperável, de natureza mercantil, dele jamais faz parte.









A poesia de Cesário nasce no silêncio da vida que realmente não é aquela sua aparente. Mas os poemas que ele vai criando na sua curta existência lentamente o projetam num novo mundo, fantástico ainda que imediatamente real e reconhecível. Nasce com esta poesia um novo sistema de linguagem, inicialmente em contraposição a qualquer possibilidade de receptividade, mas que cedo irá desvendar a própria força no forjar diálogos e sentimentos novos.









A língua poética do poeta revolucionário é feita com a aparente sintaxe da









comunicação comum, na qual o poeta intromete a genialidade criadora de novos ritmos e de morfemas que corroem qualquer forma de indiferença e incompreensão. Novos mundos são então projetados aos que desde logo sabem penetrar na complexidade de uma nova semântica poética, na qual a metalinguagem é presença copiosa.









Partindo da tradição romântica dos sentimentos mais pessoais e da participação









serena com a natureza, o poeta cedo alarga o seu cenário sentimental ao plano urbano. A partir daí, com o surgir de uma Lisboa inédita aos ritmos poéticos portugueses e ao gosto geral de uma época, a poesia de Cesário Verde se faz revolucionária. A aparente dicção prosaica se revela fonte de invenções e de liberdade. Com ela, a receptividade se faz conquista de liberdade partecipativa.









Tudo se origina das mais profundas raízes do poeta, alimentadas de forte universalismo e de uma mágica capacidade de criar mundos inicialmente encubertos aos olhos, prontos a serem vividos na perfeita receptividade.









O sentimento do mundo do poeta é universal, ainda que sempre ligado ao seu mundo









urbano. Este se faz renovador a cada canto de uma praça ou à descoberta da gente mais simples que caminha pelas ruas pedregosas:





















“ Nas nossas ruas, ao anoitecer,









Há tal soturnidade, há tal melancolia,









Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia









Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.









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Toca-se as grades, nas cadeias. Som









Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!









O aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,









Bem raramente encerra uma mulher de “dom”!









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E os guardas, que revistam as escadas,









Caminham de lanterna e servem de chaveiros;









Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros,









Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.





















E, enorme, nesta massa irregular









De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,









A Dor humana busca os amplos horizontes,









E tem marés, de fel, como um sinistro mar!”





















O mais consciente hino tradutor de “O sentimento dum ocidental” português é significativamente dedicado ao poeta que comovia Portugal com os seus gritos pela liberdade e a favor dos simples, dos humildes, dos desgraçados: Guerra Junqueiro. Como acontece com o poeta de Os Simples, a complexa e revolucionária poética de Cesário Verde é ela igualmente um canto da liberdade sempre reconhecida. Com esse canto a poesia de língua portuguesa se projeta no futuro enquanto um tempo real e concreto.









A partir da poesia de Cesário Verde o romantismo cumpre um longo percurso, atingindo o mais amplo sentido social e desde então fazendo-se uma constante no processo de evolução dos tempos criativos. Com ela estavam abertas as portas de todos os realismos.

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