segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Um país onde a tragédia é não haver tragédias

Carlos Loures

Não há quem não elogie a Suíça – a limpeza das cidades e aldeias, a pontualidade com que comboios cumprem horários – podemos acertar os relógios pelas partidas e chegadas – a urbanidade dos suíços, o nível de vida dos suíços, os relógios suíços, o chocolate, os canivetes, os bancos…

A Suíça é, na realidade, um país bonito. Visitei-o há uns anos na Primavera, por altura da Páscoa. Apanhei alguns daqueles fortes nevões sem os quais a Suíça tem tanta graça como o Algarve sem sol ou a Alemanha sem cerveja. Com a minha mulher e outro casal amigo e o seu filho (o Gomes Marques, a Célia e o António Pedro), percorremos o país que, como sabemos é pequeno - uma área ligeiramente superior à soma do Alentejo com o Algarve - ao longo de um pouco mais de uma semana. Chegados de avião a Zurique, visitámos depois as demais cidades – Genebra, Lausana, Basileia, Montreux, Lucerna, Zermatt, os Alpes… (estive a ver as fotografias, mas não me lembro se o itinerário seguiu esta ordem). Comprovámos tudo o que se diz – a beleza, a limpeza, a organização… Porém, quando atravessámos a fronteira e chegámos a França, após uma maravilhosa viagem sem incidentes, sentimos uma certa sensação de alívio. Por que terá sido?

Segundo a tradição, foi em 1307 que se deu o episódio de Guilherme Tell, a história da flecha, da maçã e da cabeça de seu filho. Todos conhecem a lenda que inspirou poetas, escritores e o grande compositor Rossini que criou uma ópera com o nome do herói suíço, cuja abertura é particularmente famosa. A história é assim: Guilherme Tell e o filho, ao passarem pela praça central de Altdorf não saudaram, como era obrigatório o símbolo do domínio dos Habsburgos, o chapéu de Gessler, o tirano que, em nome dos austríacos, governava o território. Presos, Tell foi condenado a disparar com a besta uma frecha sobre uma maçã colocada em cima da cabeça do menino. Situando-se a 50 passos, atada a criança a uma árvore e colocada a maçã sobre a sua cabeça, Tell disparou, acertando na maçã. Porém, vendo que Tell tinha uma segunda frecha, o governador perguntou-lhe para que a queria: «Para atravessar o teu coração, caso tivesse morto o meu filho!» A lenda de Guilherme Tell tem várias versões. Nas crónicas de Melchior Russ de Lucerna, por exemplo, do último quartel do século XV, Tell aparece como o principal herói da luta pela independência travada pelos primeiros cantões. A ciência histórica contradiz as lendas, pondo mesmo em causa a existência de Tell. Porém, no imaginário popular suíço, ele é uma figura com que os helvéticos se identificam – numa recente sondagem, verificou-se que 60% dos cidadãos da Confederação acreditam que ele existiu.

A Suíça é um país muito bonito, mas é um bocado monótono, os suíços são inteligentes e diligentes, fabricam relógios, chocolates, canivetes e tudo isso, mas são um pouco, como hei-de dizer ... (ia quase a dizer chatos) previsíveis em demasia. Para nós, latinos, habituados a uma certa balbúrdia, fora e dentro das cabeças, toda aquela limpeza, método e arrumação são enervantes. Contou-nos uma imigrante portuguesa que quase foi expulsa por, no Natal, estar a partir nozes que lhe tinham chegado de Portugal. Os vizinhos acharam o ruído insuportável e chamaram a polícia que a intimou a cessar de imediato a operação. Senão…

Apesar deste feitio miudinho, não pode deixar de surpreender como, quase sem recursos naturais, num território pequeno e super-povoado com quase oito milhões de habitantes, consigam ter um dos níveis de vida mais elevados do mundo. Embora, num registo diferente, surpreenda também, como tão civilizados, só em 1971 tenha sido concedido o direito de voto às mulheres, sendo que, até então, a maioria das cidadãs entendia não dever votar. Recusando-se a integrar a União Europeia (não sei se resistirão durante muito tempo), conservam a moeda, o fortíssimo franco suíço, mantendo a condição de principal praça financeira do mundo na gestão de fortunas, lugar que ocupam mercê de um blindado sigilo bancário que permite aos europeus ricos fugirem à apertada rede fiscal que vigora na União. E não só.

Um país impecavelmente limpo que mantém essa limpeza asséptica mercê da sujidade que reina em seu redor. Uma jangada, um paraíso fiscal, num oceano mafioso. Em todo o caso, o cerco a esta vergonha vai sendo apertado: em Abril de 2009, depois da reunião do G20 em Londres, a Suíça foi finalmente incluída pela OCDE na lista dos paraísos fiscais. O governo helvético comprometeu-se a dar mais informações sobre os depósitos nos seus bancos. O que irá prejudicar este negócio tão próspero que teve avultados lucros quando, após a segunda Guerra Mundial, tendo desaparecido no fumo dos fornos crematórios do tio Adolfo muitos dos depositantes judeus, os valores depositados foram incorporados no património dos bancos. Depois foram os políticos corruptos, os barões do narcotráfico e outros activos empreendedores internacionais a usar os bancos suíços como máquinas de lavar para o seu dinheiro. Por isso, deixar de ser um porto seguro para os miseráveis que enriquecem com a miséria e com a morte, vai ser um duro golpe para um país tão limpo, tão certinho. Mas de uma coisa podemos estar certos: tudo se passará sem tragédia. Rodeada pelo oceano da tragédia dos outros, na jangada Suíça não acontecem tragédias. Tragédias são coisa que a Suíça não conhece.

Em «Heróis e Túmulos», o escritor argentino Ernesto Sábato tem uma frase lapidar sobre o tema: «os mitos nacionais» (…) «são fabricados intencionalmente para descrever a alma de um país, e assim me ocorreu naquela circunstância que a lenda de Guilherme Tell descrevia com fidelidade a alma suíça: quando o arqueiro acertou na maçã com a flecha, por certo no meio exacto da maçã, perdeu-se a única oportunidade histórica de uma grande tragédia nacional. Que se pode esperar de tal país? Uma raça de relojoeiros, no melhor dos casos.»

Por falar em relógios: de72 em 72 horas, há um suicídio na Suíça. É a principal causa de morte no país, que tem uma das mais elevadas taxas de suicídio do mundo. Porque será?

11 comentários:

  1. Carlos, parabéns por tão elucidativo texto. Nem vou comentar nada, de tão preciso que és. Apenas um pormenor que tem a sua graça. Há muitos anos parei o carro, momentaneamente,e saí junto ao Lago Le Mans, a fim de o mostrar à minha filha, deixando o carro a trabalhar. Do sétimo ou oitavo andar de um prédio do outro lado da rua,vem à janela um velhote, que, exasperado, fazia amplos e agressivos gestos que eu logo entendi como impondo o desligar do carro.

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  2. Cher Monsieur,

    Cultivez-vous un minimum et ainsi vous améliorerez votre ignorance crasse de la Suisse, en particulier sur le plan historique et économique.

    Les Suisses fabriquent bien d'autres produits que le chocolat, les montres et les couteaux. Ce pays dispose d'une quantité incommensurable de PME actives dans des secteurs à très haute valeur ajoutée tels, la microtechnique, la nanotechnologie, la biotechnologie, la pharmacie, la chimie, l'electronique, sans compter ses multinationales d'origine suisse comme ABB, Schindler, Syngenta, Mettler Toledo, Oerlikon, Novartis, Roche et bien d'autres encore. La Suisse fait partie des pays les plus innovants et les plus compétitifs de la planète.

    Bien à vous

    A.

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  3. Cést vrai, la Suisse fabrique des produit bien des valeur ajustés e trés innovatives e bien competitifs.Merci pour votre participation.

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  4. Embora não seja meu hábito responder a comentários anónimos, dado que o seu anonimato não abriga qualquer espécie de incorrecção formal,abro uma excepção.

    O meu texto é escrito num registo bem-humorado e, inclusivamente, refiro o prodígio que representa um país sem grandes recursos naturais ter alcançado um patamar de desenvolvimento tão elevado. Isso só se consegue com uma grande capacidade de inovação, com o recurso a quadros com grande preparação científica, e tudo isto pressupõe uma apurada organização, nomeadamente na Educação e na Formação. Não pus em causa nem a beleza do País, nem o seu elevado índice de desenvolvimento social, económico, tecnológico, científico. Se o senhor(a) ler com atenção, não encontrará nada que contrarie essa realidade - a Suíça está entre os países mais desenvolvidos do mundo.

    A minha crítica, pouco profunda, diirigiu-se contra a uma política bancária de moralidade muiro discutível, que transforma o país num paraíso fiscal, paraíso onde se refugiam fortunas resultantes de negócios obscuros (feitos em países menos organizados, prósperos e desenvolvidos do que a Suíça, bem entendido. E este negócio quadra mal com a exigência de perfeição que se verifica em toda a sociedade helvética. Não sei como é que os suíços, tão pouco tolerantes para as imperfeições dos outros povos, conciliam essa exigência com um negócio tão repugnante. A isto o senhor não se referiu.

    Quanto âo resto, ao Guilherme Tell, às citações de Ernesto Sábato, etc. são apreciações de quem vê realidades estrangeiras à luz de conceitos próprios. Mas peço desculpa se feri o seu patriotismo.

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  5. Sem dúvida que há um paradoxo insanável entre a "limpeza" do país e a " sujidade" dos bancos.tambem é certo que se não fosse na Suiça seria em qualquer outro lado.

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  6. Ó meus amigos, então ficam indignados ao mais leve boato de corrupção neste país e andam com paninhos quentes com a Suiça, i.e. os suiços, que em referendo de 1984 aprovaram por grande maioria manter o sigilo bancário, sabendo que no "plan historique" serviu primeiro os senhores da terra e os reis de França e depois todos os trafulhas da Terra. A Suiça abriga capitais provenientes de actividades criminosas, é reconhecido internacionalmente; está no topo do PIB mas ao nível rasca das Ilhas Cayman, Oman, Seychelles, etc. no lucrativo negócio da lavagem de dinheiro. Faz parte da lista negra dos paraísos fiscais. Grande exemplo de civilização guardando e fazendo circular dinheiro e jóias de ditadores de países miseráveis, do narcotráfico, da corrupção política e financeira, da evasão fiscal, de fraudes e todos os negócios ilícitos imagináveis. O caso suiço é mais grave, pois ao contrário de muitas ilhotas que só são offshores e mais nada, têm as micro, nano, e biotecnologias, e o resto de que se gabam. A praça financeira pesa muito, nós sabemos, mas deviam abster-se de tentar dar aulas de história, e ainda menos, de se apresentarem como exemplo civilizacional.

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  7. Pois é verdade quanto às contas só com algarismos nada de letras, mas tambem é verdade que eles tẽm muita inovação e produtos de grande nível.O que não desculpa a lavagem...

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  8. Cher Monsieur,

    A titre liminaire, je vous prie de bien vouloir m'excuser de ne pas vous répondre en portugais. Je comprends cette langue, mais je ne l'écris malheureusement pas.

    C'est tellement facile de critiquer un pays et sa population, n'est-ce pas?

    Oui, il est vrai que les banques suisses ont blanchi l'argent des nazis pendant la deuxième guerre mondiale. Mais vous conviendrez que cette période est maintenant révolue. Au cas où vous ne le sauriez pas, un rapport de 12000 pages a été écrit par des historiens indépendants du monde entier durant les années 90, à la demande des autorités suisses, sur l'attitude générale de la Suisse et surtout des banquiers suisses pendant la deuxième guerre mondiale. A la suite de ce rapport, les banques suisses ont indemnisé les juifs spoliés de leurs biens. Les Suisses sont conscients qu'ils n'ont pas été tout blancs et vous remercient ne le leur rappeler. Mais au fait, qu'en est-il du "gentil" Portugal et de ses saloperies commises dans ses anciennes colonies??? Est-ce que ce pays a déjà demandé pardon aux nombreuses populations massacrées durant l'époque coloniale??? Est-ce qu'il a déjà dédommagé les victimes???? Et les victimes portugaises, durant la dictature militaire, qu'en est-il de leur indemnisation???

    Pour en revenir à la Suisse d'aujourd'hui, vos stipulations laissant croire que les banques de ce pays continuent systématiquement à blanchir l'argent sale sont dénuées de tout fondement. La Suisse possède aujourd'hui la loi anti-blanchiment la plus sévère du monde, elle coopère systématiquement dans le cadre de l'entraide judiciaire en matière pénale lorsqu'une infraction est avérée. En outre, il est beaucoup plus facile d'ouvrir un compte bancaire à Londres ou dans le Delaware qu'en Suisse.

    S'agissant du secret bancaire, je suis contre le fait que les banques suisses profitent de l'évasion fiscale des ressortissants étrangers grâce au secret bancaire. Mais rassurez-vous, ce pays respecte maintenant les critères de l'OCDE. Il était temps. Par contre, la Suisse en tant qu'Etat souverain est en droit de maintenir le secret bancaire à l'intérieur de ses frontières, pour les personnes qui y résident.

    Par ailleurs, la Suisse n'est pas un paradis fiscal, au sens de la définition de l'OCDE. Là encore, vous racontez n'importe quoi. Demandez aux dizaines de milliers de vos compatriotes qui vivent en Suisse s'ils ne paient pas d'impôts.

    S'agissant de la Suisse pays soi-disant "intolérant", je me permets de vous rappeler que 21% de ses habitants y sont étrangers et que ce pays est loin d'accueillir uniquement les grandes fortunes du monde. Il accueille en particulier les travailleurs portugais qui n'ont pas de quoi vivre dans votre merveilleux pays. Oui, le Suisse est parfois ennuyeux, mais lorsque l'on souhaite émigrer dans un autre pays, le minimum que l'on puisse faire, c'est de s'intégrer à la population de ce pays. Si un jour j'émigre au Portugal, pays que j'apprécie énormément, je ferai tout pour respecter la façon de vivre des Portugais.

    En ce qui concerne l'adhésion de la Suisse à l'Union européenne, il est clair que ce pays n'est pas prêt à adhérer à cette nouvelle Union soviétique, dont le déficit en matière de démocratie fait peur à voir.

    Lorsque vous prétendez que cela ne va pas durer longtemps, là encore vous démontrez votre ignorance de la Suisse. C'est le peuple et uniquement le peuple qui peut décider s'il souhaite adhérer ou non à l'UE.


    Si vous souhaitez avoir mon adresse e-mail, la voici : nicolas_pierre2002@yahoo.fr

    Bien à vous.

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  9. @Carlos Mesquita

    Cher Monsieur,

    Je vous invite à effectuer urgemment un cours intensif sur la Suisse et en particulier sur son économie, avant de venir nous faire part de votre vide culturel, voire intellectuel sur ce pays.

    Bien à vous.

    Nicolas

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  10. Sr, Pierre Nicolas: também como explicação preliminar, digo-lhe que leio textos em língua francesa sem recurso a dicionário, mas se quiser escrever sem erros, terei de recorrer não só ao dicionário, mas também a uma gramática. Portanto, o senhor lê bem o português, eu leio o francês - este sistema funciona.
    Não pretendo, nem eternizar esta troca de comentários, nem ter a última palavra. Digo-lhe só que não devemos acusar de ignorãncia os que não pensam como nós. Perante a realidade Suíça, temos opiniões diferentes. Perante factos históricos objectivos, emitimo juízos de valor pessoais, subjectivos. Estamos ambos no nosso direito. A minha apreciação da Suíça baseia-se numa viagem de alguns dias e de algumas leituras. É minha convicção que um curso intensivo sobre a Suíça me iria dar argumentos suplementares.
    Fiz uma crónica e fi-la com seriedade, pois nela transmiiti a impressão colhida. Se para escrever cada texto se tivesse que fazer cursos intensivos e, mais do que isso, não despertar desacordos, garanto-lhe que não existiria jornlismo. Repare que o senhor não contesta os factos, discorda é das conclusões que eu deles retiro. Que podemos fazer?
    Agradeço-lhe o ter quebrado o anonimato.

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  11. Meu caro, o que quer dizer é que todos temos telhados de vidro, o que é verdade. Portugal tem 900 anos de existência muita coisa fez mal mas muito mais coisas fez bem, temos que as ler à luz dos tempos.Eu como europeísta convicto tenho pena que a Suiça não adira, mas tambem lhe quero dizer que só a queremos cá se o seu povo se pronunciar. E no meio de tante disćordia, concordamos no mais importante.Na Democracia!

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