sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Cinema

 Marcos Cruz


“Achei interessante”, dizia, de cigarro na mão, a Bafiela. À volta dela, outros cromos repetidos da cultura portuense assentiam de sorriso místico, como se ela estivesse a dizer uma grande coisa.

Eu, farto daquele “já há”, saí dali tipo camisola do brasil: verde e amarelo. Sim, sim, era tanto o nojo que transportava. Só que, dessa vez, ela notou. E, pedindo desculpa aos parceiros de tertúlia, veio atrás de mim.

“Ei!”, chamou. Eu, já com a chave do carro na mão, olhei-a, surpreso. “Desculpe, eu sei que não nos conhecemos, mas não pude deixar de reparar no seu olhar para mim, agora mesmo, à saída do cinema. Tem alguma coisa que me queira dizer?”, perguntou. “Não, nada. Porquê?”, devolvi eu, mula.

Pensei, momentaneamente, em pôr à prova a sua perspicácia. Se ela era tão boa a interpretar filmes impenetráveis, a ponto de toda aquela plêiade de hemorróidas cultas se curvar à mera pronunciação da palavra “interessante”, não demoraria nada a perceber o que me ia na alma. “É que fiquei com essa ideia... Pareceu-me incomodado”, respondeu. “Incomodado, eu? Desculpe, mas não estou a ver aonde quer chegar. Então eu saio do cinema, venho para...”. Interrompeu-me: “Claro, claro. Não se preocupe. Eu é que tenho de me desculpar. Boa noite”. Em passo lento, de quem pensa, voltou para junto da nata da cidade.

Eu, ainda com a chave do carro na mão, fiquei como o tolo no meio da ponte. Por um lado, queria-me ir embora, até porque estava a precisar de dormir. Por outro, sentia-me insatisfeito, apetecia-me puxar um bocadinho mais aquele fio, ver no que é que aquilo dava. Guardei a chave no bolso e voltei ao cinema. Desajeitado, toquei-lhe na gabardina, pelas costas. Ela voltou-se e, como se já estivesse a contar, sorriu. Despediu-se dos presentes, olhou-me e perguntou: “Vem?”. Acompanhei-a naquele seu passo, sem saber até onde.

Em silêncio, fui guiado até ao meu carro. “A partir daqui é consigo”, disse ela finalmente, numa ambiguidade calculada que parecia querer sublinhar a sua percepção de que, na balança dos meus sentimentos, o encanto passara, subitamente, a pesar mais do que a repulsa. Sem ponta de charme, perguntei-lhe onde morava. Ela riu-se, já nas suas quintas, como se morasse ali mesmo, naquele corpo, naquela aura segura. “Quer boleia?”, arrisquei. Escusado será dizer que houve um segundo de intervalo antes da resposta dela. Um segundo de silêncio – não a preceder o jogo, como acontece no futebol quando alguém morre (aí é um minuto, eu sei), mas a meio, justamente no seu epicentro.

De um lado, o sadismo; do outro, a vulnerabilidade. A vitória estava mais que anunciada, e não havia ali árbitro à vista para subornar. “Por que havia de querer?”, questionou ela, a fazer render o peixe, como um artista da bola que, em posição de remate e com a baliza aberta, prefere adornar um pouco mais a jogada para aprimorar o golo. “Não sei, trouxe-me até aqui”, justifiquei, desconfortável. “Trouxe-o até aqui porque o achei interessante”, justificou ela, enorme. “Acha tudo interessante?”, provoquei, num improvável contra-ataque de ironia que ela, estranhamente, não percebeu: “Como assim?”. De repente, a bola estava do meu lado: “Disse o mesmo sobre o filme, há pouco, aos seus amigos”.

Foi então, quando eu já esperava um novo e bem mais saboroso segundo de silêncio, que ela, semicerrando os olhos, enervada, incrédula até, se revelou: “Olha, meu filho da puta: se me quiseres comer o cu, muito bem. Se não quiseres, há mais quem queira! O que eu não estou é para aturar estas merdas! Por falar nisso: tens SporTV em tua casa?”.

(Ilustração de Adão Cruz)


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